A doença de Parkinson ainda não tem cura, mas há uma cirurgia capaz de devolver a qualidade de vida aos doentes. Trezentos portugueses já a fizeram. Esta é a história de um deles.
António Manuel Mendes é empurrado pelos corredores do hospital numa cadeira de rodas. Já tem o cabelo rapado para a cirurgia. Com o pescoço caído tenta esconder a cara apática, cujas mãos têm dificuldade em alcançar.
A expressão não é de tristeza nem de alegria. É um completo vazio que faz duvidar que seja possível que este doente tenha apenas 55 anos. Só quando lhe é dirigida a primeira pergunta os olhos ficam molhados.
"Então, está preparado para começar este longo dia?", questiona Maria Begoña Cattoni, neurocirurgiã no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, que se prepara para entrar no cérebro de António Mendes para apagar alguns dos efeitos que a doença de Parkinson lhe trouxe.
A cirurgia chama-se estimulação cerebral profunda e dura o dia todo, sempre com o doente acordado. Foi o Hospital de S. João, no Porto, que estreou este procedimento no país, em 2002. Desde aí os aparelhos evoluíram e já se realizaram mais de 300 intervenções. Em Santa Maria fazem-se três a quatro por mês.
"É o dia mais difícil da vida" deste antigo gestor comercial da CP, resume o seu médico, Mário Rosa, também neurologista no mesmo hospital e que durante a cirurgia vai avaliar os efeitos que os cinco eléctrodos introduzidos no cérebro de António Mendes irão produzir. O objectivo é estimular uma zona do cérebro que se chama "núcleo subtalâmico" e tem apenas sete por quatro milímetros. "É um pequeno feijão que queremos adormecer", esclarece o especialista. E é o único caminho possível para o doente recuperar a qualidade de vida.
Pouco passa das 8h00 de terça-feira, dia 5 de Abril. Mas a história de António Mendes começa muito antes. Há cerca de dez anos começou a ficar lento. "Faltava-me o equilíbrio", conta ao PÚBLICO, num discurso que tem muita dificuldade em articular - teve que suspender toda a medicação antes da operação. Foi em Santos (Lisboa), no seu percurso diário, que percebeu que algo não estava bem. Um homem de 45 anos não podia ser assim tão afectado pelo cansaço. Foi ao médico e veio o veredicto: tinha Parkinson, uma doença neurológica degenerativa para a qual ainda não existe cura e que afecta sobretudo pessoas com mais de 60 anos.
Cada vez mais off
Em Portugal estima-se que existam cerca de 22 mil doentes com esta patologia - descrita pela primeira vez em 1817 pelo britânico James Parkinson, que acabou por dar o nome à doença. O papa João Paulo II morreu com ela e entre outros casos diagnosticados contam-se os do actor norte-americano Michael J. Fox e do pugilista Cassius Clay. O actor, célebre pelo filme Regresso ao Futuro, foi das pessoas mais novas a quem foi diagnosticada a doença: tinha 30 anos. Muitos dos avanços na investigação devem-se precisamente a Michael J. Fox. A fundação com o seu nome distribui todos os anos milhões de dólares para investigação nesta área.
O Parkinson afecta as células do cérebro que produzem dopamina - essencial para o controlo dos movimentos e para a modulação do humor. Com a morte das células, os músculos de António Mendes foram ficando cada vez mais rígidos e começou a não conseguir controlar os movimentos e alguns impulsos e emoções. Ficou de tal forma dependente que teve de ser institucionalizado. A medicação existente consegue atrasar a progressão da doença, mas tem muitos efeitos secundários e António Mendes tem cada vez mais fases off e menos fases on (expressão utilizada para descrever as alturas em que os doentes medicados conseguem reduzir os sintomas do Parkinson). Foi por estar cada vez mais off que passou a ser seguido há ano e meio pelo médico Mário Rosa.
Quando a medicação ainda faz efeito, mas apenas por pouco tempo, é a melhor altura para avançar para uma cirurgia que tem critérios clínicos muito exigentes e bem definidos, explica o médico. O doente não pode ter mais de 70 anos nem sinais de demência (outra das consequências da doença). É que a cirurgia é feita apenas com anestesia local, para que os médicos consigam perceber a reacção aos estímulos produzidos no cérebro. O doente tem de estar ciente do procedimento e colaborar com a equipa. "O objectivo é reduzir os sintomas do Parkinson, que decorrem de uma perda de neurónios. Só percebemos que um doente tem Parkinson quando surgem os sintomas e estes só se manifestam quando há apenas 30 por cento de células sobreviventes. Quando apanhamos o doente, a doença já vai sempre avançada", diz Mário Rosa.
Precisão milimétrica
Antes do bloco operatório há um longo percurso a fazer. Os neurocirurgiões Maria Begoña Cattoni e Herculano Carvalho levam o doente para uma pequena sala onde vão colocar aquilo a que se chama "um quadro estereotáxico" na sua cabeça. O aparelho - visualmente impressionante - serve para os especialistas poderem medir os locais exactos onde vão entrar na cabeça do doente e é atarraxado com parafusos após anestesia local. Durante todo o processo, António Mendes quase não se mexe, mas mesmo assim os neurocirurgiões vão explicando a cada momento o que vão fazer. "É importante manter o doente tranquilo", lembra Herculano Carvalho.
Com todos os exames reunidos, o doente é depois encaminhado para o bloco e a equipa médica reúne-se numa outra sala para uma fase determinante do processo. Com a ajuda de um software, cruzam as imagens da TAC (tomografia axial computorizada) com a ressonância magnética que tinha sido feita antes de se colocar o quadro na cabeça do doente. O objectivo é perceber que zonas do cérebro se podem furar sem provocar hemorragias potencialmente fatais. O trabalho é absolutamente milimétrico e toda a equipa dá palpites.
“É com estas imagens que fazemos os cálculos para a cirurgia sem ter necessidade de abrir directamente a caixa craniana. A ressonância tem um maior poder para mostrar as estruturas do cérebro e a TAC tem mais precisão”, prossegue Begoña Cattoni ao mesmo tempo que por sugestão de Herculano Carvalho sobre em um milímetro um dos pontos onde vão colocar o eléctrodo. Terminada esta parte a equipa desinfecta-se e dirige-se para o bloco operatório.
"Há sempre uma margem de risco" que mesmo as mãos experientes não podem evitar, recorda Gonçalves Ferreira, chefe do serviço de Neurocirurgia do hospital, que salienta a complexidade do procedimento e a exigente qualificação dos médicos. Só os aparelhos colocados custam cerca de 25 mil euros e Gonçalves Ferreira teme que os cortes na área da saúde "coloquem em causa o serviço de excelência" que a unidade oferece, com melhorias na ordem dos 70 a 80 por cento. Por outro lado, a cirurgia permite que o doente reduza a medicação (que pode custar entre 200 a 600 euros por mês) para 25 por cento.
Já no bloco operatório há outro momento crucial. Aqui o cheiro e os feixes de luz não permitem qualquer tipo de abstracção em relação ao facto de estarmos num hospital. As frias paredes de mármore contrastam com as fardas e máscaras verdes e azuis. Tudo tem um ar completamente asséptico, apesar da confusão de materiais espalhados para a cirurgia e de fios e mais fios dos aparelhos necessários. É um verdadeiro caos controlado em que cada um sabe bem o seu papel. O anestesista explica cuidadosamente ao doente que lhe vai dar “uma pica” e “agora mais outra”. Os neurocirurgiões posicionam-se e vão solicitando material à equipa de enfermagem.
Uma broca evoca o barulho de uma cadeira de dentista, mas a força necessária é inimaginável. O objectivo é fazer uma incisão do tamanho de uma moeda de um euro na cabeça do doente. Segue-se a introdução dos eléctrodos no lado direito do cérebro. É aqui que os neurologistas entram em cena. Através das ondas registadas por um computador e de alguns testes ao doente percebe-se quais os melhores níveis para reduzir os sintomas da doença sem causar outros efeitos negativos. "Senhor Mendes, faça assim aos dedos... Quantos dedos vê?... Agora conte até dez... Agora diga-nos o que compra no supermercado", vai pedindo Mário Rosa. E como que por magia, o doente, que antes da cirurgia mal articulava uma palavra, começa a ser capaz de contar. E diz que costuma comprar açúcar e café. As mãos vão ficando mais flexíveis e os movimentos mais controlados. A equipa sorri, satisfeita. São quase duas da tarde quando se inicia o trabalho no hemisfério esquerdo. O trabalho só termina às 18h00. Para a semana António Mendes tem de voltar ao hospital para colocar debaixo do peito o aparelho que permitirá regular remotamente a estimulação dos eléctrodos – o que faz com que o sucesso só seja perfeitamente visível dentro de algum tempo.
Isaac Oliveira fez a mesma cirurgia há dois anos e o sucesso é evidente. A garantia é dada pela mulher, Edite Lopes, já que Isaac "gosta pouco de falar". O marido, de 66 anos, tem Parkinson há 15. "Ficou totalmente dependente e estava totalmente parado. Já não era ele. Reformou-se e tivemos de fechar o nosso restaurante." Dois anos depois, Isaac Oliveira goza a sua reforma com qualidade, é autónomo na sua higiene e conduz, de uma assentada, de Lisboa até Lamego.
Como será o futuro de António Mendes? O PÚBLICO visitou-o dois dias depois da cirurgia e Mário Rosa explica que o doente ainda tem alguma instabilidade emocional. Como se sente? António Mendes verte algumas lágrimas e mexe a mão, como que a querer mostrar as diferenças. "Prefiro não pensar na doença. Agora é andar para a frente." Este fim-de-semana já é passado em casa, onde o esperam a irmã e uma amiga.
Quanto ao futuro, Mário Rosa explica que registaram na cirurgia melhorias na ordem dos 80 por cento em relação ao estado do doente antes da intervenção. Nalguns casos chegaram aos 90 e aos 100 por cento. Mas será que é possível um regresso à família? “Está descrita a perturbação familiar no pós-cirurgia. O que acontece frequentemente é que o cuidador tinha passado a ser o cabeça de casal, tomando as rédeas do controlo da casa. Quando o doente fica bom o cuidador deixa de ter como objecto principal o doente e tem tempo para fazer outras coisas. Por outro lado, o doente quer readquirir a importância que tinha no seio da família e essa cedência de chefia é difícil de gerir”.
Por agora, Mário Rosa já ficava satisfeito se visse António Mendes sorrir. “Nunca vi o Sr. Mendes sorrir ao longo destes quase dois anos”. Entre uma e outra lágrima António Mendes admite que “foram dias confusos e os mais difíceis da minha vida”. O médico aperta a sua mão. E António Mendes esboça finalmente meio sorriso.
Romana Borja-Santos, aqui