PORQUE OS PROFESSORES ESTÃO CONTRA A MUNICIPALIZAÇÃO?
Há um conjunto de competências que os
docentes não querem ver nas mãos das autarquias. O que está em causa no
processo de municipalização?
Cerca de 53 mil professores, num universo de 54 mil votantes, disseram
não à municipalização. Foi a resposta massiva a um referendo nacional
realizado em junho pela Plataforma Sindical de Professores, que à
Federação Nacional dos Professores (FRENPROF) junta mais sete
organizações sindicais. Mas o que está em causa na transferência de
competências na área da educação para o poder local?
Através da celebração de um contrato, o Ministério da Educação e Ciência
(MEC) quer delegar nas câmaras municipais uma série de
responsabilidades administrativas e pedagógicas que incluem o
financiamento da educação pública. Entre muitas atribuições, mais ou
menos contestadas, o Decreto-Lei n.º 30/2015 concede às autarquias a
possibilidade de contratarem docentes para projetos educativos de
carácter local. Escolher até 25% do currículo. Gerir a rede escolar.
Organizar o calendário, as matrículas, ditar as regras para a elaboração
de turmas. Recrutar o pessoal não docente.
E requalificar os edifícios.
Na passada terça-feira, dia 28 de julho, os professores forem
surpreendidos pela publicação em diário da república, de 15 contratos de
delegação de competências, assinados entre o Governo e as câmaras
municipais de Águeda, Amadora, Batalha, Cascais, Crato, Maia,
Matosinhos, Mealhada, Óbidos, Oeiras, Oliveira de Azeméis, Oliveira do
Bairro, Sousel, Vila Nova de Famalicão e Vila de Rei. Concelhos onde, em
média, 95% dos professores disseram não à municipalização, no referendo
realizado pela Plataforma Sindical de Professores.
A FENPROF condena o “secretismo” envolvendo as negociações entre as
partes: MEC, ministro adjunto e do Desenvolvimento Regional, autarquias.
E denuncia alegadas ilegalidades nas assinaturas destes novos
contratos, alguns assinados antes da necessária deliberação das
assembleias municipais.
Descentralizar sim, mas não desta forma, dizem os docentes. “A
descentralização de competências na área da educação – iniciativa
política necessária mas que nada tem a ver com a municipalização lançada
pelo Governo – sempre deverá ser precedida de um debate profundo”,
argumenta a FENPROF, num comunicado emitido dia 30, onde acusa o Governo
de “desmantelar as funções sociais”. Ao mesmo tempo, anuncia a
contrarresposta: três providências cautelares, entregues para parar o
processo em Oliveira do Bairro, Águeda, Oliveira de Azeméis, somam-se às
de Matosinhos, Batalha e Mealhada.
As organizações sindicais temem que este seja o princípio do fim da tão
proclamada autonomia das escolas. Manuela Mendonça, membro da Direção do
Sindicato dos Professores do Norte (SPN), onde 98% dos professores
votaram contra a delegação de competências, alerta que há “riscos
associados aos processos de municipalização que não podem ser
ignorados”. Perante o “descomprometimento do Estado a nível financeiro e
de responsabilidade social”, a sindicalista prevê “o acentuar de
assimetrias entre escolas de diferentes municípios, a sujeição a uma
espécie de centralismo local e o aumento do clientelismo”.
O processo põe em causa a autonomia dos estabelecimentos de ensino,
argumentam os docentes. Que, em Matosinhos, interpuseram uma providência
cautelar para suspender a decisão da Assembleia Municipal onde se
aprovara a celebração do “Contrato de Educação e Formação Municipal”.
Foi aceite a 29 de julho pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto,
que desta forma parou o processo até nova decisão judicial.
Perda de autonomia
Emília Fradinho, docente no concelho de Matosinhos, acredita que a
municipalização poderia ter sido feita de uma forma “mais transparente e
com outras regras que não retirassem competências às escolas para as
passar para as mãos de quem pode até nem perceber nada de educação”.
Como não aconteceu assim, junta-se às vozes que contestam a celebração
do contrato no concelho.
A perda de autonomia é uma das principais razões pelas quais os docentes
matosinhenses interpuseram a providência cautelar. “O processo tem de
ser mais esclarecido e debatido”, argumenta Emília Fradinho. Para já, é
visível o impacto que terá ao nível pedagógico. Face às novas regras, o
Projeto Educativo da Escola, aprovado entre 2013 e 2016 pelos seus
órgãos internos, passa a ter de estar adaptado ao Projeto Educativo
Municipal. Logo por aí, “as escolas começam a perder a sua identidade e
fica também em causa o rumo que querem seguir”.
Por outro lado, há uma forte suspeita sobre as consequências de permitir
aos municípios definir 25% do currículo. “Claro que existe o currículo
nacional, mas a autarquia vai poder dar indicações sobre como serão
feitas as matrículas, constituídas as turmas e decidir quais as ofertas
de escola”, alerta a docente.
Disciplina partidária na escola
De norte a sul do país, as preocupações dos professores são idênticas.
Na Amadora, “há uma ameaça de que as escolas venham a perder liberdade
na oferta educativa aos alunos, porque há uma gestão centralizada das
matrículas”, alerta Jorge Martins, docente no concelho onde o não chegou
aos 94%.
No plano nacional, o impacto do processo de transferência de
competências terá muitas variantes. Basta pensar nas diferenças de
dimensão geográfica e demográfica dos vários concelhos, geradora de
outras tantas, quer ao nível da rede de estabelecimentos de ensino quer
do número de alunos e professores.
Entre os vários problemas que resultem da “descentralização”, e onde se
inclui a possibilidade de contratação de docentes, para Jorge Martins,
“o maior risco de todos é a entrada dos mecanismos de decisão e
influência dos partidos na escola”. “Agora temos uma presidente
empenhada na área da educação, mas depois teremos outros. E a capacidade
de o poder de proximidade influenciar o funcionamento das escolas é
muito grande e limitador.”
Ainda assim, Jorge Martins concorda com a ideia de descentralização: “O
MEC não pode continuar a ser um órgão centralizador”. No entanto, um
processo de transferência de competências, com intenção de dar à escola
cada vez mais autonomia, poderia, segundo o docente, ter encontrado
melhor modelo de concretização. Seguindo, com sugere o docente, um
caminho semelhante ao traçado nas escolas localizadas em Territórios de
Educação de Intervenção Prioritária (TEIP).
As escolas TEIP funcionam com uma articulação mínima do MEC e têm
autonomia para fazer pareceria com instituições superiores. “Que são uma
espécie de amigos críticos, vão às escolas ver os seus projetos e
funcionamento, e a quem é reconhecida autoridade, legitimidade e
competência em matéria de educação”, explica Jorge Martins. Precisamente
o que a maioria dos docentes não reconhece às autoridades municipais.
Desemprego
Para já, os docentes mantêm os vínculos laborais que têm com o MEC.
Manuela Mendonça, dirigente do SPN, lembra contudo que uma das novas
competências a cair nas mãos das autarquias é a contratação de
professores para a oferta específica de base local, que poderá ir até
25% do currículo.
Por um lado, a gestão dos recursos docentes passa a ser feita em
articulação com a autarquia e os agrupamentos de escolas e as escolas
não agrupadas. “O que consubstancia a atribuição ao município de parte
do poder de direção sobre os professores”, acautela Manuela Mendonça.
Por outro, “os professores têm fundados receios de que num futuro
próximo se aplique o consagrado ao pessoal não docente”, cujo
recrutamento, pagamento de salários, ação disciplinar e avaliação cai
sob a alçada das câmaras.
Os efeitos profissionais para a carreira docente são também uma das
preocupações de Ana Rita Leite, docente no concelho da Mealhada, onde
96% dos professores recusaram a municipalização. “Podem dizer que os
docentes mantêm o vínculo ao MEC, mas a verdade é que nestes contratos
há várias formas de nos empurrarem para horário zero e para a
mobilidade, agora chamada de requalificação.”
Outro dos problemas do processo é não salvaguardar certas situações,
aponta Ana Rita Leite: “No contrato não há qualquer cláusula que impeça a
câmara de subcontratar quem quer que seja”. Assim, as escolas podem ver
serviços como os da cantina, bares e papelaria concessionados a
operadores privados. As consequências desta liberdade podem ser
perversas, prevê a docente: “As câmaras não vão entrar neste processo
para perder dinheiro.” Mais: “Não vão certamente fechar um bar à hora do
almoço, para que os alunos comam na cantina uma alimentação mais
equilibrada, como acontece na minha escola.”
Ameaça à qualidade do ensino
Resta saber se será ou não possível estender a apelidada
“descentralização”, a todos os municípios. Se uns aderirem e outros não,
há questões que, para Jorge Martins, vão ficar à espera de reposta:
“Que tipo de estrutura vai coordenar as questões da educação a nível
nacional? Quem entra no processo de municipalização tem uma coordenação,
quem não entra tem outra? Ou mais tarde ou mais cedo todos os
municípios vão ser forçados a entrar?”
Não só como professora, mas também enquanto mãe, Ana Rita Leite receia
que o país se “transforme numa manta de retalhos de currículos e
subsistemas educativos”. Com remendos que ponham em causa a igualdade de
oportunidades e a preparação dos alunos, seja para continuar a estudar
no superior ou trabalhar. E essa é mais uma razão para dizer: “Estou
contra e temo a municipalização!”
Escolas básicas e secundárias: o que muda com a municipalização?
A esfera de ação do poder local pode estender-se a vários aspetos da
vida das escolas. Desde logo anunciados no Decreto-lei n.º 30/2015, que
prevê a “transferência de competências do Estado para as autarquias
locais e para entidades intermunicipais” também noutras áreas.
O artigo 8.º cinge-se à educação e antecipa as novas responsabilidades
camarárias ao nível dos ensinos básico e secundário. A começar pela
organização do calendário escolar. Matrículas, colocação de alunos e
orientação escolar, bem como a definição dos horários passam a poder ser
feitos pela autarquia, que também vai decidir se um curso abre ou não e
que disciplinas podem constar nas ofertas de escola.
A relação entre a escola e as famílias pode ser afetada. Já que as
autarquias passam a ter a decisão sobre os recursos apresentados em
processos disciplinares envolvendo os alunos. Podendo ditar, como
sanção, a transferência de estabelecimento de ensino. Por outro lado, os
apoios sociais escolares e a promoção de estratégias para o sucesso
escolar caem na dependência dos órgãos municipais.
Até agora mais contestada está a possibilidade de recrutamento de
professores para projetos de base local. As autarquias vão ainda poder
contratar o pessoal não docente, ao nível do secundário, distribuí-lo
consoante as necessidades da rede escolar do município e proceder à
respetiva avaliação.
No que respeita à administração, as câmaras passam a gerir os orçamentos
e os recursos financeiros afetos às escolas. Ficam responsáveis pela
construção e requalificação dos edifícios tanto do ensino básico como
secundário e pelos equipamentos e infraestruturas necessárias. Nestas
novas atribuições está incluída a compra de mobiliário escolar e de
materiais pedagógicos.
Andreia Lobo, aqui