domingo, 1 de setembro de 2013

'EU SOU O PIDE QUE TE APANHOU'

De Edmundo, já lhe disse. De como inaugurou o Tarrafal, campo de concentração do Estado Novo, de como sobreviveu dez anos em terríveis condições, de como fechou os olhos a Bento Gonçalves, primeiro líder do Partido Comunista.

A mãe baptizara-o de Edmundo por causa do personagem do Conde de Monte Cristo – e depois percorreu um caminho semelhante a Edmond. Deportado para uma ilha, traído por um homem que haveria de casar com a primeira namorada da sua vida. 

Uma história de filme como história de filme daria a da sua prisão depois do 25 de Abril; acusação por tráfico de armas de que não se pôde defender em tempo útil. Esteve por isso um ano preso quando o país se libertara já da ditadura. O tribunal absolveu-o, mais tarde Jorge Sampaio condecorou-o com a Ordem da Liberdade, mas ficaram-lhe as feridas: estivera preso apenas para não comprometer Ramalho Eanes, Mário Soares e Manuel Alegre – aquando da prisão, Presidente, primeiro-ministro e dirigente do PS, respectivamente. 

Os três, com Edmundo, tinham-se preparado para a eventualidade de o Partido Comunista tomar o país pelas armas, uma guerra civil estava iminente e tornara-se necessário que as forças democráticas se posicionassem. O Major Eanes seria protagonista do 25 de Novembro. Soares liderava o PS, e Alegre e Edmundo dirigiam o seu departamento de segurança. Os socialistas receberam as armas que acabaram por não ser necessárias. Ficaram guardadas no armazém de Edmundo que, dois anos mais tarde, foi alvo de uma denúncia e teve de arcar com as consequências. Sozinho.

Membro mais do que destacado do PCP, protegido de Bento Gonçalves e amigo íntimo de Pavel. Abandonaria os comunistas por convicção de que o caminho não seria por ali, mas continuou activo e na primeira linha.

No primeiro dia do ano de 1962, com o regime saído de um dos anos mais horríveis da sua história, Salazar despertou para um ataque diferente dos outros. Na última noite de 1961 no grupo de opositores encontrava-se, juntamente com o capitão Varela Gomes e Manuel Serra, Edmundo Pedro. O essencial da acção fora preparada, no Brasil, por Humberto Delgado e Serra.

Ao que se jura, Delgado regressara clandestinamente ao país nessa noite, estava a postos para, a partir de Beja, liderar a revolta e terminar com o regime. Algumas pessoas morreram, de um lado e do outro, no entanto o golpe acabaria abortado por uma fuga de informação que deixara os responsáveis de sobreaviso.

Edmundo Pedro é novamente preso. Quatro anos em Caxias com várias visitas à Rua António Maria Cardoso, sede da PIDE. Foi outra vez torturado. Espancado e sujeito à ‘Estátua’. Durante quatro dias, em pé, não lhe é permitido que faça um movimento. Como todos começa a ter alucinações, a ver bichos a passar, rememora a ‘frigideira’ no Tarrafal, o irmão morto nos seus braços numa manifestação, passa-lhe a vida à frente dos olhos. E num dos dias, um agente, de nome Colaço, diz-lhe que descanse. Só ele estava ali, deixou-o encostar-se e combinou um sinal para o caso de chegar um colega. Prometeu não o esquecer.

Edmundo pediu a Lurdes, com quem casara e, sem qualquer dúvida, a mulher da sua vida, para lhe enviar pimenta em pequenas doses. Essencial para o plano de fuga.

Que aconteceu, sem êxito. Manuel Serra e Edmundo são os únicos a ir algemados para as sessões de instrução com um juiz no tribunal militar. Numa delas, pediu a Sardinha, PIDE com quase dois metros de altura, para ir à casa de banho – o agente tirou-lhe as algemas. 

Tinha a pimenta num pacote que furou com os dedos. Como Sardinha usava óculos e era corpulento, só lhe restou atirá-la para o nariz e a cara. Fê-lo no átrio do Tribunal Militar e saiu a correr perante os gritos horrendos do PIDE, os mais horríveis que se lembra de ter escutado.

Fugiu para um carro estacionado à porta. Um carro que o esperava. O jovem sentinela deixou-o passar sem reacção e ao chegar ao lugar combinado, o automóvel estava trancado pois tinha um mecanismo diferente e à pessoa que lá o deixara não lhe ocorreu que algo do género pudesse acontecer.

O furioso Sardinha, pronto a disparar, aproximou-se. Edmundo correu na ilusão de alcançar o Hospital da Marinha onde se poderia esconder por entre as travessas de Santa Apolónia. 

Um operário travou-lhe o passo instigado pelos gritos ‘agarra que é ladrão’. Contudo, como nos filmes, abriu os braços e o homem ficou-lhe com o casaco. Prosseguiu a fuga, Sardinha prepara-se para disparar, mas já muito perto da Feira da Ladra, um outro PIDE consegue alcançá-lo e prendê-lo. O seu nome: Colaço.

Tudo isto para lhe contar o que apenas ficará em poucas linhas.

Pouco após o 25 de Abril tocaram-lhe à campainha. Lurdes abriu a porta e, à sua frente, encontrava-se um homem que pediu para ver o senhor Edmundo. Esse homem era Colaço, o PIDE que lhe travara a fuga, mas que também o ajudara numa situação dramática.

Falaram. O ex-agente justificou-se, lamentou-se, pediu-lhe desculpa. Edmundo aceitou-as. E teve pena porque aquela figura transportava a culpa para sempre. E, a partir daí, quase todos os natais, bate-lhe à porta e deseja-lhe o melhor. Edmundo agradece-lhe e diz-lhe que pode ir. Em paz. 

Luís Osório, aqui