Paulo Brandão, juiz presidente da Comarca do Baixo Vouga, em entrevista ao Jornal da Bairrada, sobre a nova reforma judiciária, disse não concordar com o esvaziamento do Tribunal de Anadia, assim como se interroga se existe justificação para a construção de um novo tribunal em Oliveira do Bairro quando o tribunal de Anadia ficará quase vazio e com excelentes condições. Sobre o projeto piloto que é a Comarca do Baixo Vouga garante que o balanço global é positivo.
Não obstante algumas consequências negativas que devemos considerar como natural no quadro de um ensaio, faço um balanço global francamente positivo, quer em termos de adaptação dos recursos existentes à necessidade de cada um dos juízos (tribunais) que compõem a comarca, logrando assim uma maior racionalidade, economia e eficiência na sua utilização, quer em termos dos resultados obtidos, com um abaixamento de pendências e encurtamento do tempo de duração dos processos, com uma exceção, o Juízo do Comércio de Aveiro, não obstante algumas dificuldades que temos conseguido superar “tant bien que mal”, nos dois juízos de execução de Ovar e Águeda e no Juízo de Média Instância Criminal de Aveiro. Os números falam por si e estão disponíveis para quem os quiser conferir no site da Direção Geral de Política da Justiça, e que mereceu até uma referência elogiosa da Direção Geral de Administração da Justiça no respeitante aos processos executivos face ao relevo com que se reveste tal desempenho no quadro dos compromissos internacionais assumidos com a troika.
Há falta de meios humanos na Comarca do Baixo Vouga? E físicos?
Embora haja falta de meios em algumas das unidades orgânicas da comarca (leia-se tribunais), numa visão geral dos recursos existentes, humanos e materiais, equipamentos, parque imobiliário, etc., os meios são suficientes, ainda que no limite, para aquilo que seriam as exigências do trabalho a desenvolver. O que se passa é que estão dispersos, sujeitos a muito restritas possibilidade de deslocação em função das necessidades pontuais que vão surgindo aqui e ali, e comprometidos com tarefas laterais, ou seja, impõe-se uma maior concentração para que se obtenha esse ganho sem qualquer acréscimo de despesas ou encargos e se admita também alguma mobilidade, ainda que dentro de certos limites e sob determinados pressupostos. Em consequência pois de tudo isso, quando ocorre uma qualquer pressão pontual na demanda de algum dos serviços e estes não conseguem responder nem serem prontamente reforçados, há uma imediata acumulação que vai comprometer irremediavelmente o seu adequado funcionamento, provocando por sua vez um clima de insatisfação dos cidadãos, situação que só a muito custo, com a aplicação posterior de grandes quantidades de meios humanos e materiais e num lapso de tempo considerável, irá ser possível reverter.
Aqui como em outras situações da vida, o melhor é pois prevenir e acudir a tempo, evitando-se que o problema se declare e se avolume, contaminando tudo e todos, a exemplo do que ocorreu ao longo do tempo em muitos tribunais deste país e que ainda hoje sofrem os efeitos das suas nefastas consequências.
Entretanto, quero deixar claro que, ao pugnar por alguma flexibilidade na movimentação de meios humanos, dificilmente se pode compreender e aceitar que não possa ser deslocado um funcionário entre Aveiro, Ílhavo e Vagos, ou entre Anadia e Oliveira do Bairro, ou entre Albergaria-a-Velha, Sever do Vouga e Águeda, ou ainda entre Estarreja e Ovar, localidades bastante próximas, não defendo nem pugno que isso possa ocorrer para lá de certos limites muito estritos e com a devida fundamentação, não só por respeito aos funcionários e magistrados, que o merecem muito com justificadas razões, mas também porque não há necessidade e pode criar um certo desânimo que afeta a produtividade.
A justiça ficou mais célere?
Sem dúvida que ficou mais célere, os números e as estatísticas falam por si e confirmam essa constatação, e mesmo naqueles pontos onde são maiores as dificuldades e a pressão da demanda com natural repercussão nas pendências, os Juízos do Comércio de Aveiro e o de Média Instância Criminal desta cidade ou aqueles outros de execução, ficou demonstrada a bondade e o acerto dessa solução, posto que conseguem dar melhor e mais rápida resposta do que aquela que existia anteriormente com a atribuição dessas competências pelos vários juízos das comarcas que hoje fazem parte da área territorial do Baixo Vouga, que engloba 11 municípios, dos quais apenas a Murtosa não tem nem tinha qualquer serviço judicial.
Oliveira do Bairro necessita de um novo tribunal?
Em função do quadro atual, aquilo que ocorre no momento presente, as competências atribuídas aos vários juízos que aí estão instalados, a minha resposta não pode deixar de ser positiva, e um exemplo disso foi a necessidade de deslocar um julgamento para Anadia por haver melhores condições de conforto e espaço para o realizar, mas a manter-se o novo mapa tal como está gizado, com a fixação dos coletivos e os grandes julgamentos em Aveiro, a minha resposta já não poderá ser essa, posto que desaparecerá o principal fator que dita essa necessidade.
No entanto, na linha dos pressupostos enunciados e ainda que me repetindo, perante a situação de grandes dificuldades que o país atravessa, a necessidade de satisfazer as necessidades muito mais urgentes, antes de avançar para novas construções, há que esgotar a capacidade já instalada, colocando-se portanto uma questão que não me cabe decidir, é certo, mas para a qual não posso deixar de chamar a atenção, se tem justificação a construção de um novo tribunal quando a poucos quilómetros há um outro quase vazio e com excelentes condições.
O novo mapa prevê a criação de dois polos (Aveiro e Santa Maria da Feira). Esta reorganização vai prejudicar o cidadão?
O prejuízo a considerar será sempre em função da qualidade do serviço para o cidadão, da resposta à questão – irá tal qualidade melhorar ou piorar ? No entanto, a criação dos dois polos enquanto tal não traz qualquer prejuízo, pelo contrário, representa até a meu ver o reconhecimento de realidades distintas entre uma e outra dessas áreas, e que o atual mapa, com referência às NUTs traduzia com mais rigor e atualidade, pois que se repararmos bem e com um pequeníssimo e irrelevante acréscimo, esses polos correspondem àquilo que é hoje a área da comarca do Baixo Vouga, o primeiro, com sede em Aveiro, e aquilo que seria a comarca de Entre Douro e Vouga, o segundo, com sede em Santa Maria da Feira. O que já me parece menos bem é a fixação dos grandes julgamentos nos dois polos, obrigando às inerentes deslocações, sem que disso resulte, uma vez a meu ver e com o devido respeito, o efeito pretendido, que com a extinção e alteração do desenho de serviços haja uma libertação de magistrados e funcionários que irão ser utilizados para acudir às tais pressões pontuais. Como exemplo posso apontar o Juízo de Pequena Instância Criminal de Ílhavo, que irá desaparecer, sendo as suas competências absorvidas pelo que é agora a Instância Criminal de Aveiro (as designações irão mudar), com os efeitos muito importantes face à intensidade e número de diligências. Tenho esperança que isso possa ainda ser objeto de alteração.
Poder-se-ia pois manter as NUTs e agrupar apenas em termos de direção duas ou mais dessas unidades, com um único presidente, administrador e magistrado coordenador do MP, conseguindo-se por um lado o ganho pretendido na diminuição de custos e, por outro lado, manter-se-ia e aperfeiçoar-se-ia aquilo que resulta já da presente experiência piloto, aprofundando-a, sem as ruturas traumáticas que provocam todas as grandes reformas que têm a ver desde logo com a simples adaptação a novas designações e divisão dos serviços e competências.
Uma outra consequência da referência a distritos é que o Tribunal da Relação competente para apreciar os recursos de todos os juízos do Futuro Tribunal de Aveiro será o do Porto e não de Coimbra como até aqui, o que trará uma alteração de hábitos e procedimentos consideráveis, principalmente para aquelas populações e profissionais do foro que estejam situadas a sul do distrito e tenham que se dirigir para norte.
O cidadão tem-se aproximado da justiça ou, pelo contrário, está a afastar-se?
Há que distinguir as coisas, afastamento propriamente não digo, os números e estatísticas retiram fundamento a uma tal conclusão, penso é que vivemos um momento em que tratamos e discutimos as questões da justiça de forma induzida e errada, num clima de incompreensão e exaltação, muitas vezes por quem não tem conhecimento dessa realidade, a um ritmo de “talk-show”, esquecendo o muito que se faz de bem, há também alguma coisa de menos bem, que nos faz perder o sentido daquilo que relevante e daquilo que é acessório, produzindo nas pessoas um amargo sentimento de inoperância, que os prevaricadores não são punidos, ambiente que se torna ainda mais exacerbado quando as circunstâncias de vida dos cidadãos pioram e são maiores as dificuldades a enfrentar. Em todo o caso, o que importa é ressaltar sempre que o interesse superior a salvaguardar e a perseguir é o dos cidadãos, que há profissionais a trabalhar árdua e proficuamente para que isso tenha concretização, advogados, solicitadores, funcionários e magistrados, e que estão empenhados na melhoria dos serviços.
No entanto, não posso deixar de reconhecer que os encargos que incidem sobre aqueles que procuram os tribunais, cada vez mais gravosos, constitui na verdade um fator muito importante, que pode mesmo ser impeditivo, da decisão de recorrer aos serviços judiciais.
Recorrer à justiça, hoje em dia, é caro. O preço veio pôr cobro aos processos de “faca e alguidar” que só serviam para entupir os tribunais?
Num mundo onde se fala cada vez mais em custos e produtividade, era natural que isso também chegasse aos serviços do Estado, justiça incluída, tudo tem um preço e é salutar e necessário que as pessoas sejam confrontadas com isso e valorizem o esforço económico que representa uma justiça pronta e eficaz. Todavia, mais importante que o aumento dos custos, é garantir que aqueles que não têm recursos possam aceder aos tribunais e satisfazer uma necessidade tão básica e essencial como é o acesso à justiça, concedendo-lhes a necessária assistência e apoio, que deve ser criteriosa e rigorosa, pois havia de facto algum desperdício nessa concessão não tão despiciente assim, bem pelo contrário, e que levava a abusos e desequilíbrios. Há tão só que separar o trigo do joio.
No caso do crime da Mamarrosa, Marinho Pinto tem dito que apenas dois arguidos – com ligações a magistrados - em Portugal, acusados de homicídio, aguardam julgamento em prisão domiciliária. Que leitura faz?
Desconheço quantos processos existem que tenham as características mencionadas pelo Dr. Marinho Pinto, se são apenas dois ou mais, mas ignorando a insinuação, posso referir quanto ao caso ocorrido na área desta comarca, cujo processo foi tramitado no Juízo de Instrução Criminal de Águeda e encontra-se agora no Juízo de Instância Criminal de Oliveira do Bairro, com o julgamento designado para muito breve, houve sempre uma grande rapidez na sua movimentação e um adequado funcionamento dos serviços no respetivo tratamento, sendo naturalmente as decisões proferidas sujeitas ao escrutínio dos advogados, magistrados do MP e dos tribunais superiores, Relação de Coimbra e Tribunal Constitucional, dentro daquilo que prevê a lei e dos seus limites.
Quanto à decisão relativa às medidas de coação até ao julgamento, resulta de um acórdão da Relação de Coimbra, que não posso naturalmente comentar, seja essa ou qualquer outra, quer quanto ao teor ou ao sentido, mas para cuja leitura eu remeto.
Posso acrescentar ainda, e vale a pena fazê-lo pelo aspeto didático que encerra, que até à decisão condenatória transitada em julgado ,qualquer arguido goza de uma presunção de inocência, razão pela qual as medidas mais gravosas, “a fortiori” a prisão preventiva, devem ser aplicadas em casos muito precisos e restritos, pelo que o natural seria que se saudasse qualquer outra medida que evitasse as mais gravosas, retirando justificação à acusação recorrente de que em Portugal se utiliza em demasia a prisão preventiva. Uma vez mais, porém, é caso para invocar o velho adágio com o qual termino, preso por ter cão e preso por não ter.
O encerramento do Tribunal de Sever do Vouga e o esvaziamento de competências do Tribunal de Anadia constam da reforma do sistema judiciário. Concorda?
É inevitável a concentração dos serviços para uma melhor resposta dos tribunais sem acréscimo de custos, orientação e, em função disso, não posso deixar de concordar com o encerramento do Tribunal de Sever do Vouga. É insustentável manter a atual pulverização dos recursos disponíveis, mas não concordo com o esvaziamento do Tribunal de Anadia, de todo, o que deveria acontecer era exactamente o contrário. Aliás penso que a colocação desta questão nos permite determinar e avaliar com rigor aquilo que importa discutir, e que irá contar no futuro para as populações, o que me parece não tem ocorrido.
Sem querer estender-me em considerandos acerca daquilo que foi e é a presente experiência piloto da Comarca do Baixo Vouga, as suas alterações e objetivos, hoje perfeitamente assimiladas e adquiridas, tinha/tem como um dos três principais objetivos uma maior proximidade dos cidadãos, proximidade que alguns entendem e caracterizam em função de critérios estritamente geográficos, a meu ver há muito ultrapassados pelos ganhos de modernidade a vários níveis, denotando assim uma visão parcelar e localizada que faz perder de vista o todo em que se inserem e aquilo que importa efetivamente alcançar.
A proximidade da justiça deve ser entendida, penso eu e com todo o respeito por opinião contrária, em função da permanente disponibilidade de um serviço com qualidade, eficiência e celeridade da sua resposta, o que só pode ser obtido com uma maior concentração e mais intensiva utilização dos recursos existentes, desde logo, pela máxima ocupação dos edifícios próprios do Ministério da Justiça, a exemplo do que acontece em Anadia, que foi objeto de obras recentes e dispõe de uma excelente localização e boas condições, o que também acontece com os tribunais de Vagos ou de Albergaria-a-Velha, enquanto em outros locais encontramos juízos instalados em prédios arrendados, em condições inadequadas e indignas até, dando azo a pertinentes e bem fundadas reclamações por parte dos utentes, como acontece com o Juízo do Trabalho e o Juízo do Tribunal de Família e Menores de Aveiro.
A Comarca do Baixo Vouga tem serviços instalados em 16 imóveis, localizados em dez municípios, o que quer dizer que todos os dias tem de haver pessoas incumbidas de garantir a abertura e o encerramento dessas instalações, a sua manutenção, quem ocupe os vários balcões na receção do público, das comunicações, organize o expediente interno e externo, etc., etc. Facilmente se pode perceber que, se houvesse um menor número de prédios, teríamos mais gente disponível para se dedicar àquilo que são as tarefas próprias dos tribunais, os processos, sua tramitação, julgamento e eventual execução das suas decisões, como seriam menores os custos, que são muito mais dispendiosos e complexos que o pagamento das contas de água e luz das instalações.
Pedro Fontes da Costa, no 'Jornal da Bairrada' de 19 de Julho de 2012