domingo, 25 de março de 2012

VAMOS “ARRASAR” A SOCIEDADE

           “Em todos os lugares onde morais, as cidades serão destruídas e os lugares altos serão arrasados, de maneira que os vossos altares serão derrubados e demolidos, os vossos ídolos imundos serão quebrados e destruídos, os vossos altares de incenso serão arrasados, tudo o que fizestes será eliminado” (Ez.6,6).
         “Serão arrasados os lugares altos de Isaac, os santuários de Israel serão destruídos” (Amós, 7,9).
         “Todo o vale será aterrado, toda a montanha e colina serão aplanadas”… (Lc.3,5).

Recordei estes breves textos inspirados como suporte para ilustrar um voto meu. Irrealizável, claro. Mas se os montes fossem tornados rasos e enchidos os vales, haveria a uniformidade da planura na qual todos os seres animados e inteligentes poderiam mover-se, encarando-se reciprocamente, sem muros nem outros obstáculos limitativos.

Vou pedir perdão a Deus e não aos homens, que jamais me perdoariam, por esta minha veleidade seguinte.

É que se fosse eu a governar as cidades, vilas e aldeias iria fomentar, nesta sociedade, determinadas metamorfoses para evitar o desacerto de alguns dos seus membros se encavalitarem sobre os outros que, sendo mais pobres e menos capazes, se tornam bases de sustentação, só porque não atingiram, como aqueles, os bens de matéria ou a esperteza para se alcandorarem nos lugares proeminentes.

Por este facto, a minha proposta aparece no sentido duma postura, fundada e bem alicerçada no cumprimento obrigatório, para rapidamente se demolirem todos os arranha-céus, os primeiros, segundos, terceiros e seguintes andares onde se abrigam famílias encaixotadas, sem ocasiões nem espaços de diálogo fraternal ou qualquer colaboração contextualizada. É nessas áreas que se constroem as sociedades ditas, e de verdade, anónimas onde cada um vive o seu mundo, isolando-se dos restantes habitantes, provocando assim o aumento feroz do egoísmo e desconhecimento entre si. Os primeiros não “conhecerão” nunca os segundos que, por seu turno, em nenhuma vez, poderão afirmar a sua identidade e personalidade.

E porque não quero aparecer como arauto ou profeta da desgraça, para o que acabo de expor alvitro soluções que me parecem cabais.

A terra é extensa e livre, devendo ser ocupada e arroteada na sua lonjura. Advirão daí vantagens de toda a ordem, porque qualquer indivíduo poderá viver no seu espaço não calcando ninguém e também longe de ser pisado pelos outros; haverá víveres para todos pois, na sua leira, descobrirão a capacidade de trabalhar e o gosto alegre de comer daquilo que produzem no respectivo quintalejo, por seu esforço e saber; poderá cada um olhar o vizinho como semelhante e amigo e não o inferior ou superior; todos arrumarão a sua morada e os do rés-do-chão não terão de suportar o lixo daqueles que teimam viver calcando ou incomodando quem pertence ao escalão do nível inferior.

Acabam-se as escadas e os ascensores para os, sempre, sôfregos de subir mais alto ultrapassando, grotescamente, os pequenos.

Num terreno plano haverá ainda hipótese de melhores condições para a deslocação e mais capacidade de ajuda pois toda a gente está no mesmo patamar, tanto nas necessidades como nas potencialidades de atenção às carências dos seus patrícios. Ouvir-se-ão, com a nitidez da alta definição, os gemidos dos pobres e chagados.

Assim, pode ser que, pela obrigatoriedade de se construírem moradias em pisos únicos ao longo da terra vazia, evitando-se as agressões bárbaras aos planos urbanísticos harmoniosos, as pessoas se tornem mais próximas e iguais, descortinando até as coisas com olhos menos vesgos e capazes de adquirirem um horizonte visual rasgado e consciente.

Vamos, portanto, “arrasar” a sociedade, isto é, envidar todos os esforços e conhecimentos para tornar os homens mais humanos, grandes, humildes e contributivos.

Padre Manuel Armando, no 'Jornal da Bairrada' de 22 de Março de 2012