Cavaco Silva falou ao espelho até o
partir em cacos.
Cavaco, face à inexistência de um compromisso formal à
esquerda, fez o que tinha a fazer e disse tudo o que não podia dizer. As
primeiras reacções às palavras do presidente da República foram
emocionais e vieram dos excluídos pelo discurso.
Ao fazer sapateado
político sobre cerca de 20% dos portugueses votantes do BE e da CDU,
atirando-os ideológica e permanentemente para o campo da não solução
governativa do país, Cavaco Silva fez mais pela união da Esquerda em
Portugal em pouco mais de dez minutos do que mais de 40 anos de
democracia alguma vez conseguiram.
Pessoalmente, inflige-se uma derrota
em toda a linha quando tinha pela frente a decisão mais simples dos seus
mandatos. O que quer que seja que tenha passado pela cabeça do
presidente, passou e veio para ficar.
Cavaco não foi rei nem
roque, foi joker. E jogou o seu "wild card" no fim do jogo, quando
poderia assumir a sua posição sultana de estátua do regime. Mas, pelo
contrário, ao terminar o segundo mandato, resolveu ter uma conversa em
família à boa maneira do dedo em riste, apontando para os meninos maus
que pensam algo que ele julga como absolutamente abominável. Resolve dar
uma lição de democracia e sai-lhe uma pedagógica lição sobre exclusão.
Não contente, comete outro erro estratégico: ao seduzir os deputados do
PS para a liberdade de voto "limiano", voltou a não perceber que António
Costa tem a bancada parlamentar consigo (como se veria, posteriormente,
na eleição de Ferro Rodrigues para presidente da AR). Pior. Cavaco terá
percebido que alinhou toda a Esquerda contra si e que condenou as
negociações à esquerda a um entendimento, seja ele qual for, sólido ou
movediço. A Esquerda sempre foi autofágica mas, convenhamos, nunca teve
que lidar com um presidente assim.
As ameaças, juízos de valor e
insinuações que traçou sobre as opções políticas de parte dos
portugueses que deveria respeitar, faz todas as equações saltarem para
cima da mesa. A "partidarite" de Cavaco Silva acompanha o seu bloqueio
ideológico mental. É verdade que daí a sustentar um Governo de gestão ou
de iniciativa presidencial vai um grande e gigantesco passo. Mas Cavaco
Silva pode querer dá-lo por não conceber que bloquistas e comunistas,
os seus estimados activos tóxicos da democracia, possam fazer parte do
poder pela primeira vez durante o seu consulado. Para o presidente, já
bastam os socialistas. Se inviabilizar uma solução governativa à
esquerda, que ninguém se surpreenda: o aviso foi dado. Nada é pior do
que um estadista que, perante o crepúsculo do seu fim político, resolve
ficar na história pelas suas próprias motivações internas. E no
semblante imperturbável da esfinge, esta motivação é o que lhe sobra.
Encostaria então o seu Citroën BX à direita e, já a estacionar, passaria
de imediato para a leitura dos seus livros de história.
Tudo já
seria mau se não fosse pior. Ou como a história nos pode cair em cima,
convocando o divã. Despertava o ano de 1986 na Comissão Política
Nacional do PSD. Aníbal Cavaco Silva (então primeiro-ministro e
presidente do PSD) denuncia o comportamento indisciplinado de militantes
do partido que apoiaram Mário Soares nas eleições presidenciais, em
detrimento de Freitas do Amaral. Na sequência dessa denúncia, o Conselho
Jurisdicional do PSD decide pela suspensão de 21 militantes (entre os
quais, Adriano Jordão e Valentim Loureiro) e pela expulsão de três
militantes do partido e sindicalistas da UGT: José Veludo, António
Castro e Rui Oliveira e Costa (este último, deputado, que a partir desse
momento exerceria o seu mandato como independente). As expulsões e
suspensões obedeceram ao "bom timing", esperando pelos resultados
eleitorais que derrotariam Freitas e entoariam o slogan "Soares é fixe"
em Belém.
Agora e antes, a política do facto consumado, do bloqueio
ideológico, do pensamento único. Cavaco Silva teve coragem para impor
sanções disciplinares partidárias nas únicas eleições (as presidenciais)
em que os partidos não podem apresentar formalmente candidatos nem
obrigar à disciplina de voto (nem ao apoio público ou silêncio) dos seus
militantes. O presidente do PSD que punia o delito de opinião no
passado é o mesmo presidente da República que alicia deputados do PS no
presente, alertando-os para pensarem bem antes de votar uma moção de
rejeição ou Orçamento do Estado, actos políticos estes, onde a
disciplina de voto tem, obviamente, um sentido de grandeza maior. Como
aqui questionava há duas semanas, a Esquerda podia mesmo esperar. E
ainda bem que, negociando, esperou. Para ver isto.
Miguel Guedes, aqui