Sobre os dias 1 e 2 de Novembro, dias dos mortos e da pergunta essencial.
1-
É bem possível que, para se perceber uma sociedade, mais importante do
que saber como é que nela se vive é saber como é que nela se morre e se
trata a morte. Facto é que as nossas sociedades desenvolvidas,
tecnocientíficas, do primado do ter sobre o ser, da eficácia, da
vertigem do poder, do tempo digital e da aceleração, são as primeiras na
história a fazer da morte tabu. Mais: assentam a sua realidade no tabu;
para serem o que são, têm de fazer da morte tabu.
Deus e a própria natureza já não é a terra
natal acolhedora, que provoca admiração e espanto, mas tão-só o espaço
da possibilidade de manifestação da subjectividade dominadora, como diz o
soberano "penso, logo existo" de Descartes. Desde então, tudo fica
sujeito ao cálculo, ao útil, ao funcional. Ora, se tudo é submetido ao
útil e mecânico, orientado para o poder e ter sempre mais, já não há
lugar para os outros valores. Num mundo matematizado e calculável, em
que "é real o que é calculável", o homem moderno, centrado no activismo,
pretendeu superar a angústia da morte através do domínio sem limites,
de tal modo que o que fica é o progresso ilimitado, sem finalidade nem
sentido humanos. O progresso, em que o progredir pelo progredir é o seu
próprio sentido, transformou-se no substituto da vida eterna. Este
homem, mediante os impulsos do trabalho, do lucro e do prazer sem
limites, fica narcotizado quanto ao pensamento da morte. Na agitação
constante, que tem em si mesma a sua finalidade e que se concentra no
divertissement pascaliano, o homem moderno europeu julgou encontrar o
remédio para a ideia da morte. Mas esse remédio é ilusório, pois, agora,
a morte, em vez de aparecer como "o preenchimento necessário de um
sentido vital", é poder e brutalidade sem sentido. O homem tradicional
vivia face à morte com certa naturalidade e até familiaridade. O homem
moderno, ao contrário, como vive como se não tivesse de morrer, como já
não sabe "que tem de morrer a sua própria morte", quando esta aparece,
só lhe pode aparecer como uma catástrofe. Vive no dia-a-dia, até que,
subitamente, já não há mais um novo dia.
3-
Este nosso universo tem 13 700 milhões de anos. Quase 14 000 milhões de
anos! Tanto foi o tempo que demorou o processo até chegar a um
existente que não só sabe mas sabe que sabe e sobretudo sabe que não
sabe ilimitadamente e, por isso, pergunta. Um animal que é racional,
falante, simbolizante, artista, moral... sepultante. Neste gigantesco
processo da evolução, o aparecimento dos primeiros túmulos e dos rituais
funerários é o sinal característico e decisivo da presença do ser
humano no mundo. Pela primeira vez, está no tempo alguém que é
consciência do tempo, portanto, da inevitabilidade de morrer e que
simultaneamente recusa a aniquilação definitiva. É a consciência da
morte que revela a emergência do radicalmente novo, a passagem do
pré-humano ao humano, de "algo" a "alguém".
4-
A morte é impensável em si mesma. Quando pensamos nela, é sempre no
abismo do impensável que mergulhamos. Só por ilusão de linguagem é que
dizemos, diante do cadáver do pai, da mãe, da mulher, do amigo: ele
(ela) está aqui morto (morta). Na realidade, ele ou ela não está ali: o
que falta é precisamente ele ou ela. E ninguém leva o pai ou a mãe, o
filho, o amigo, à "última morada", para enterrá-los ou cremá-los. Como
não tem sentido dizer que eles estão no cemitério e que vamos lá
visitá-los. Nos cemitérios, com excepção dos vivos que lá vão, não há
ninguém. Então, porque é que a sua violação é uma profanação execranda? O
que há verdadeiramente nos cemitérios? Naquele espaço sagrado, do
silêncio recolhido, está, paradoxalmente, a fonte da linguagem enquanto
espaço da abertura e da pergunta. O que há nos cemitérios é um infinito
ponto de interrogação: "O que é o homem?" A morte e o seu pensamento
abrem a condição humana ao desconhecido, à Transcendência inominável,
que apela e que invocamos.
5-
Com o tabu da morte apagaram-se as perguntas últimas e primeiras,
metafísicas, e também a ética e a moral. Porque é a consciência do
limite na morte que derruba as vaidades, que obriga a perguntar
ilimitadamente e nos dá a distinção do justo e do injusto, do que
verdadeiramente vale e do que não vale, da "existência autêntica" e da
"existência inautêntica" (Heidegger). Percebe-se então que as nossas
sociedades, da banalidade rasante, niilistas, tenham feito da morte
tabu, o último tabu. Agora, vale tudo, porque nada vale. E é o
espectáculo que se sabe e se vê!
Anselmo Borges, aqui