quinta-feira, 17 de novembro de 2011

DAS VÍSCERAS AOS SEIOS, TUDO SERVE PARA TRANSPORTAR DROGA

A imagem de um bidão, devidamente fechado, contendo no interior vísceras de vaca não será o mais ardente desejo da maior parte dos mortais.

Sim, da maior parte, porque há uns quantos que, à vista de tal recipiente, ultrapassam toda a repulsa e conseguem ver no interior uma fortuna incalculável. Misturados com as tripas estão alguns quilos de cocaína, que é como quem diz umas dezenas de milhares de euros.

Uma fortuna nauseabunda. Cheiros e vómitos são meras miudezas para os traficantes que, quase diariamente, inventam novos métodos para transportar droga. E há-os bem originais.

O passo trémulo, mas apressado, e o olhar fugidio, mas assustadiço, traíram a mulher que naquela madrugada desembarcou no aeroporto da Portela, em Lisboa. Vinha de São Paulo, no Brasil, viagem que só por si encerra uma boa possibilidade de ser alvo de revista minuciosa no posto fronteiriço. O ar desconfiado da senhora não passou despercebido aos inspectores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras que, depois de uma primeira mirada aos documentos, quiseram espreitar bagagens... e mais.

“Há sempre sinais. Quando alguém procura esconder qualquer coisa é quase impossível, quando interpelado, não evidenciar qualquer sinal”, conta um dos inspectores contactados. A revista à bagagem de mão deu resultado negativo, mas as bátegas de suor a formarem-se na testa e a escorrerem pelo rosto, a empaparem as mãos, os olhos, quase em desespero, a fugirem ao olhar fixo e, aparentemente, insensível do polícia, revelaram algo e acabaram por conduzir a mulher até uma sala diferente. Para uma revista corporal.

“Eram uns seios postiços. Grandes e cheios de cocaína”, conta o inspector lembrando que outros colegas já encontraram fartas cabeleiras postiças impregnadas com o mesmo estupefaciente. “Os voos da América do Sul são sempre assim. Com muita gente suspeita, vinda do Brasil ou da Venezuela. Dá sempre para desconfiar quando alguém se apresenta de uma viagem de três dias, porque ninguém vai de férias para o Brasil apenas em três ou quatro dias, ou quando alguém se apresenta com umas centenas de notas novas, sejam elas dólares ou euros”, acrescenta o mesmo responsável.

Alerta vermelho, “cagão” a bordo.
Cabeleiras postiças, fundos de mala falsos, fraldas de bebé, pastas de dentes contendo droga, mamas artificiais, roupas impregnadas de estupefaciente ou tacões de sapatos que funcionam como pequenos esconderijos são quase trivialidades nas fronteiras aéreas. Tão triviais quanto os passageiros que transportam droga no organismo. Esses, não causando grande transtorno ao pessoal da alfândega, são um caso bem... mal cheiroso para os inspectores da Judiciária que, por norma, são quem tem de os acompanhar ao longo de todo o processo, incluindo a expulsão do estupefaciente.

Na gíria policial quem transporta droga no organismo é conhecido por “mula” ou “cagão”. “São dos que mais arriscam. Arriscam ser presos e arriscam a própria vida, porque se uma das bolotas [a pequena embalagem de droga envolvida em látex, muitas vezes preservativos] rebentar e não houver possibilidade de ser socorrido de imediato, então o mais certo é ir desta para melhor”, explica um inspector da Judiciária.

Para estes polícias, que possuem equipas em permanência a investigar o tráfico de droga por via aérea, “não há maior martírio” do que acompanhar quem transporta droga no estômago. “Eles ficam para ali [em Lisboa é quase sempre no Hospital de São José, mas também se recorre a outros quando o movimento é intenso] tempos a fio, por vezes mais de um dia, e nós [os polícias] a vê-los sentados no penico [o chapéu alto, um recipiente normalmente utilizado por idosos, mas também nestes affaires policiais], a vigiar. É o verdadeiro serviço de merda”, refere fonte policial. Está assim explicado o porquê destes “correios” de droga serem vulgarmente conhecidos por “cagões”.

Quanto ao termo “mula”, este é mais utilizado quando, ao referirem-se à sua actividade, os polícias quererem salientar as grandes quantidades de droga que os “correios” conseguem transportar no organismo. “Por norma não transportam mais do que um quilo, mas já ouvi falar de um tipo que tinha mais de dois. Uma ‘mula’ dessas, com dois quilos de coca na pança, deve dar bom rendimento aos traficantes, que pagam a um aquilo que, normalmente, teriam de pagar a dois”, diz ainda a mesma fonte policial.

Madeiras exóticas e pedras ornamentais.
O tráfico por via aérea é uma actividade engenhosa, até porque exige cuidados especiais, por parte dos “correios”, na entrega do produto aos traficantes. Mas é um crime que nem sempre é muito rentável para as redes organizadas, que ao utilizarem pessoas que queiram arriscar transportar um quilo de cocaína têm de pagar viagens, alojamento e despender mais umas centenas de euros como “prémio”. Bem mais avultados são os negócios efectuados por via marítima, onde os gramas são substituídos por toneladas, mas ainda assim a arte de dissimular não é menos aprimorada.Há um caso “épico” do tráfico por via marítima em Portugal. No início da década de 2000 chegou ao porto de Leixões, proveniente do Brasil, um barco com um imenso carregamento de madeiras exóticas. As trocas de informação policial diziam que o navio em causa transportava droga, mas ninguém sabia ao certo onde. Seria na bagagem de algum tripulante? Viria num contentor? Estaria colada ao casco ou teria atravessado o Atlântico arrastada pela água?

Muitas horas passaram os polícias dentro do barco. Reviraram cantos que nem os ratos conheciam, até que alguém descobriu que um dos imensos troncos transportados parecia evidenciar sinais de ter sido cortado. O que parecia ser apenas uma pequena falha na madeira depressa se desvendou, à medida que a serradura previamente colada foi sendo afastada, como um talhe imenso, aparentemente feito por equipamento sofisticado. Por fim separou-se o tronco em duas metades. Foi como se se abrisse a tampa de um caixão, só que lá dentro, no interior previamente escavado, em vez do cadáver, estavam centenas de sacos de cocaína. Dias depois, quando terminou a vistoria a toda a madeira, haviam sido recolhidas várias toneladas de cocaína.

Anos depois, e após investigações que duravam há mais de 30 anos, a Judiciária haveria de conseguir deitar a mão a um dos mais activos traficantes e contrabandistas do país. Operava a partir do porto de Peniche, onde possuía inúmeras embarcações de pesca, e alargava a sua actividade a outros negócios, nomeadamente ao sector alimentar e à sua transformação. Entre o carregamento apreendido vinham algumas pedras ornamentais importadas da Colômbia. Apesar de bonitas, era necessário confirmar a informação, segundo a qual as mesmas continham droga no interior. Pedra partida, droga encontrada e, por fim, aquele que durante muitas décadas foi considerado o patriarca do tráfico em Portugal, foi constituído arguido.

A história recente do grande tráfico por via marítima refere ainda a apreensão de carregamentos de droga dissimulados entre toneladas de cereais, escondidas entre fardos de roupas e até mergulhadas em centenas de latas de ananás em calda. São dezenas de operações policiais, centenas de suspeitos detidos e toneladas de drogas diversas apreendidas.

Para que servem os tubos dos charutos?
O engenho e a imaginação para permitirem esconder o crime são comuns a quase todas as situações, mas poucas serão tão arrepiantes como uma das técnicas mais praticadas nas cadeias: Um tubo, que por norma serve de invólucro para charutos, é enchido com droga (ou dinheiro ou qualquer outro pequeno objecto) e enfiado no ânus da pessoa que pretende visitar determinado recluso. Uma vez ultrapassada a barreira de controlo dos guardas a entrega processa-se com alguma facilidade, pois alguns grupos de presos estão previamente avisados da chegada da encomenda e encarregam-se de criar barreiras que tapam os olhares indiscretos.

No ambiente prisional existem muitos outros métodos. A utilização de comida era, até há pouco tempo, um dos preferidos. Pode dizer-se que existiam bolos de ovos com recheio de cocaína, rolos de carne com pedaços de haxixe e arroz de heroína. O recurso à culinária complicou-se recentemente, quando a Direcção Geral dos Serviços Prisionais ditou novas regras que não só restringem a entrada de alimentos como, em alguns casos, o proíbem.

E não é mais fácil remeter a droga através de cartas impregnadas (que depois, sujeitas a uma determinada temperatura, devolvem o estupefaciente ao seu estado inicial) ou dentro de maços de cigarros, uma vez que o recurso a cães devidamente treinados resulta quase sempre na descoberta.Apesar de existirem guardas que defendem que é melhor deixar passar algum tipo de estupefaciente para as cadeias (normalmente haxixe) porque isso permite com que muitos presos tenham um comportamento mais calmo, a verdade é que as apreensões de droga ainda são frequentes nas cadeias. Já não se chega ao final de cada ano com cinco quilos confiscados, porque já ninguém arrisca introduzir de uma só vez dezenas de doses individuais (uma dose de heroína corresponde a 0,2 gramas enquanto que a dose de heroína ou de cocaína tem o peso de 0,1 gramas), mas ainda há pequenas porções que se escondem em lombadas de livros (dissimulam-se os cheiros recorrendo a outros mais intensos como por exemplo os perfumes), nas costuras de algum tipo de vestuário e até nas costuras das linguetas dos ténis ou, caso haja paciência para tanto, entrançando pequenas porções entre um atacador que antes se desfiou. A necessidade aguça mesmo o engenho.

José Bento Amaro, aqui