Corria a primeira quinzena do mês de Junho de 2006.
Chegámos praticamente ao mesmo tempo, e a balconista da perfumaria teve dúvida sobre quem atenderia em primeiro lugar. Praticamente em uníssono, dissemos ambos palavras de cortesia circunstancial:
- Faça favor; eu não tenho pressa, posso esperar um pouquinho.
Imperou então o cavalheirismo e acolhi o argumento gentil de "as senhoras" terem a primazia.
Quando acabei de ser atendida, procurei-o com o olhar, para mais uma vez agradecer a amabilidade e ele disse-me:
Imperou então o cavalheirismo e acolhi o argumento gentil de "as senhoras" terem a primazia.
Quando acabei de ser atendida, procurei-o com o olhar, para mais uma vez agradecer a amabilidade e ele disse-me:
- Sabe, fui um dos 2463 que subscreverem o abaixo assinado a favor da reposição do feriado municipal na Quinta-Feira da Ascensão. Parece que a votação na assembleia vai ser para a semana e se Deus quiser, para o ano já todos poderemos voltar a comemorar a bênção dos campos no nosso dia de feriado municipal…
Simpatizámos um com o outro e por mais duas ou três vezes, e por mero acaso ou feliz coincidência, os nossos destinos voltaram a cruzar-se. Ficámos amigos e falámos, trocámos ideias e até confidências, designadamente o facto de ambos escrevermos no oliveiradobairro.net. E como se de uma promessa se tratasse, terminava invariavelmente a conversa com a esperança em poder voltar a celebrar a bênção dos campos na Quinta-Feira da Ascensão, dia em que está do novo reposto o feriado municipal…
Vi-se que era um crente, e que para além de acreditar na palavra do Senhor, também acreditava na palavra daqueles que, mesmo sendo de carne e osso como ele, se fazem passar por senhores. Na última vez que nos encontrámos, por altura da comemoração da passagem do aniversário do oliveiradobairro.net, disse-me que este ano, no dia de feriado municipal, me ofereceria um ramo com uma espiga e plantas silvestres…
Passou-se pouco mais de um mês.
Era primavera, e o sol e o céu azul convida ao desabrochar das emoções. Sem nenhuma razão especial que o justificasse, acordei um destes últimos dias com um raio de sol a bater-me nos olhos e essa luz tão intensa fez-me pensar nesse homem, e no abraço em que, sem saber porquê, senti vontade de o envolver. E nesse instante apeteceu-me, ter ali à minha frente aquele homem simpático, de sorriso fácil e de bom trato, que podia ser meu pai e a quem, se ali estivesse, suplicaria esse gesto de carinho…
Liguei-lhe mas ninguém atendeu. Liguei-lhe durante todo o dia sem obter resposta.
À noite uma amiga comum ligou-me e a chorar disse-me que o homem tinha falecido nessa manhã, talvez, quem sabe, naquele preciso momento em que o raio de sol me tinha despertado. Atabalhoadamente anotei o local e a hora do velório, era o mínimo, teria que ir lá despedir-me dele.
À noite uma amiga comum ligou-me e a chorar disse-me que o homem tinha falecido nessa manhã, talvez, quem sabe, naquele preciso momento em que o raio de sol me tinha despertado. Atabalhoadamente anotei o local e a hora do velório, era o mínimo, teria que ir lá despedir-me dele.
Entrei e aproximei-me da urna. Suave, sereno, tranquilo e com um sorriso nos lábios o homem ali jazia. Parecia um anjo e se calhar já o era. Um anjo ou uma estrela, é indiferente, porque não se pode abraçar nem uma coisa nem outra. Mesmo assim senti necessidade de me aproximar do cadáver e ao ouvido pedi-lhe desculpa por nunca o ter abraçado. E chorei, lágrimas grossas e quentes que tombaram no rosto daquele que não voltaria a ver, e que jamais poderia abraçar.
Perpassaram-me pela mente as últimas palavras que me dirigiu: que no dia de feriado municipal se levantaria ainda mais cedo e, cumprindo a tradição, iria para o campo apanhar uma espiga e outras flores silvestres, compondo um ramo simbólico da fecundidade da terra e da alegria de viver. E que de seguida mo ofereceria.
E saí dali à pressa, sentindo-se mais estéril e distante do que nunca…
Agora, o homem, um dos 2463 subscritores do abaixo assinado, já não poderia revoltar-se com o facto de o presidente da câmara, que considerou que o executivo municipal não podia ficar alheio aos anseios legítimos de uma população cujo sentimento generalizado reclamara a reposição do feriado municipal na Quinta-Feira da Ascensão, não ter organizado qualquer evento que, nesta data, registasse o Dia da Espiga.
Chamava-se Esperançoso de Oliveira e a morte levou-o na véspera do dia em que comemoraria o 85º aniversário.
Foram muitos os que choraram no seu funeral, uma despedida onde, ao contrário do que chegara a manifestar em pública vontade, não houve strippers semi-nuas a dançarem em cima do seu caixão.
Que descanse em paz.
Alma de Deus