Desde manhã que oiço vozes. Não me assusta nem me surpreende nada. Não fui levantar a receita e deve ser por causa disso.
Ando aqui a tentar fazer mil coisas e mil coisas são muitas coisas para fazer.
Há quem suspeite que eu não tenho paciência. Pois, se calhar já não me lembro onde a deixei. Talvez tenha sido dentro do cesto da fruta entre as pêras e os kiwis.
Não gosto nada de kiwis, mas são macios e por dentro têm um verde engraçado. Gosto de os abrir ao meio e ficar a olhar para eles. Assim à espera que tu chegues de repente e lhes enfies uma colher.
Gosto de cerejas mas só gosto de comer as que ainda estão aos pares. As outras fazem-me sentir triste. Gosto de cerejas duas a duas. E de preferência das vermelhas escuras. Muito escuras e que deixam a língua pintada de sangue.
A paciência, dizem que é uma virtude. Se calhar é, mas eu acho que tenho outras. Às vezes não sei é onde é que as ponho. E nem sei se paciência é uma delas.
Pressa, tenho. Pressa de devagarinho. Será isso paciência? Não. Acho que não. A paciência é uma virtude e a pressa de devagarinho é uma expressão qualquer que serve só para eu deixar escapar o que às vezes me vai cá dentro. E ainda por cima deve ser coisa que só é ouvida por abelhas endiabradas, duendes verdes ou pelas vozes que oiço.
Mas gosto mesmo é de andar descalça ali fora no cimento quente da varanda. E de tomar banho de mangueira enquanto rego as flores dos canteiros.
Há quem suspeite que eu não tenho paciência. Mas eu acho que já tive num destes dias que está para vir. Apetecia-me que viesses aqui ter comigo e que espetasses uma colher de café dentro deste kiwi. Gosto do dia de hoje, não gosto é dos segundos que me dão tanto trabalho a contar. E gosto de contar carneiros enquanto espero que venhas ter comigo aqui, ao meu sonho. Ou que pouses ali fora em cima de uma flor qualquer do meu canteiro.
Afinal parece que são os vizinhos do andar de cima que estão a falar um bocadinho mais alto e uma das mil coisas que tenho para fazer é ir levantar a receita.
Acho que é melhor começar por aí, porque eu moro no último andar e nem sequer tenho varanda, quanto mais canteiros.
Cristina Gameiro, aqui