Multiplicam-se perigosamente os sinais de uma governação que, afinal, apenas
acredita nas virtudes da sua própria desqualificação, como se a supressão do
Estado fosse o remédio miraculoso para o florescimento do mercado, o crescimento
da economia e a felicidade geral.
Entretanto, os escândalos perseguem o ministro Adjunto, agora, no seu
oportuno "exílio" timorense donde, com extrema leviandade, encomendou a um
consultor sem credenciais políticas o anúncio do projeto precocemente falhado de
atribuir a concessão da RTP a interesses privados. O serviço público de
televisão - por cuja "existência e funcionamento" a própria Constituição
responsabiliza diretamente o Estado - não podia ser tratado com tamanha
ligeireza. Por último, veio o folhetim dos sucessivos lapsos e correções do
relatório de avaliação das 800 fundações que, dizia-se, constituíam um imenso
sorvedouro dos dinheiros públicos. Destas, por razões diversas, apenas 190 foram
efetivamente avaliadas, de acordo com a pontuação alcançada com base em três
parâmetros distintos: a pertinência, a eficácia e a sustentabilidade.
A Fundação
Paula Rego - "a artista portuguesa com maior prestígio internacional" - recebeu
uma classificação negativa que a condenava à extinção, para mais tarde, após
veementes protestos, obter a retificação de um erro flagrante. Por outro lado,
como relata Luís Miguel Queirós, na edição do "Público" de 26 de agosto, a
Fundação Calouste Gulbenkian - que só após protesto público saltou do 84.º para
o 57.º lugar deste fabuloso "ranking" - iria ficar definitivamente colocada, em
matéria de "pertinência/relevância", ligeiramente abaixo da "Fundação
Social-Democrata da Madeira" e da "Fundação Caixa Agrícola de Leiria"!
E quanto a relatórios, falta o da execução fiscal do primeiro semestre deste
ano, onde o mais grave não é a demonstração da impossibilidade, há muito
anunciada, de atingirmos as metas de endividamento prometidas aos credores
internacionais para o ano corrente. Grave, recorrendo ao eufemismo usado por
Adriano Moreira na Universidade de Verão do PSD, é aquilo a que chamou "o limite
da fadiga tributária". De entre as várias razões que podem explicar por que
ficaram as receitas dos impostos tão longe do valor esperado - o recuo da
atividade económica, a diminuição dos rendimentos das pessoas, o aumento do
desemprego - a mais insidiosa de todas é o crescimento da economia paralela e da
evasão fiscal.
Porque é o sinal de uma falência sistémica que ameaça os próprios
fundamentos do processo de modernização da sociedade portuguesa iniciado com a
revolução democrática de 1974 e acelerado pela integração europeia desde 1985.
Ao longo destes 38 anos foi-se generalizando a consciência de que o cumprimento
das obrigações fiscais era um dever e que ao aumento dos impostos e outras
exigências cívicas correspondiam melhorias substanciais da qualidade de vida -
na saúde, educação, segurança social, habitação, transportes - padrões de
dignidade e de cidadania mais ambiciosos e, em resultado de tudo isso, uma
sociedade mais aberta e solidária. Foram aquisições civilizacionais inestimáveis
para um povo que nos 50 anos anteriores vivera alheado do Mundo e dos progressos
democráticos conquistados na Europa, humilhado por uma ditadura agressiva,
tacanha e provinciana, aparentada com os fascismos escorraçados pela vitória dos
aliados na Segunda Guerra Mundial.
Sem políticas capazes de gerar confiança, sem motivos de esperança que
projetem o futuro, é difícil resistir aos apelos da selva e à lógica do
"salve-se quem puder". As dificuldades que enfrentamos requerem o envolvimento e
a mobilização dos cidadãos se quisermos preservar a sociedade democrática que,
embora tardiamente, conseguimos construir.
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