sábado, 1 de setembro de 2012

O VERÃO DO NOSSO DESCONTENTAMENTO

Multiplicam-se perigosamente os sinais de uma governação que, afinal, apenas acredita nas virtudes da sua própria desqualificação, como se a supressão do Estado fosse o remédio miraculoso para o florescimento do mercado, o crescimento da economia e a felicidade geral.
 

Assim, sem outra política para além das finanças públicas, o número de ministérios foi drasticamente reduzido e os ministros passaram a viajar pela Europa em classe turística, o que pareceria lógico e coerente, não fora o despudorado regresso ao favorecimento das clientelas partidárias com a distribuição de benesses e as nomeações sem concurso nem critério, ainda há pouco vigorosamente denunciadas como "gorduras" a extinguir.
Entretanto, os escândalos perseguem o ministro Adjunto, agora, no seu oportuno "exílio" timorense donde, com extrema leviandade, encomendou a um consultor sem credenciais políticas o anúncio do projeto precocemente falhado de atribuir a concessão da RTP a interesses privados. O serviço público de televisão - por cuja "existência e funcionamento" a própria Constituição responsabiliza diretamente o Estado - não podia ser tratado com tamanha ligeireza. Por último, veio o folhetim dos sucessivos lapsos e correções do relatório de avaliação das 800 fundações que, dizia-se, constituíam um imenso sorvedouro dos dinheiros públicos. Destas, por razões diversas, apenas 190 foram efetivamente avaliadas, de acordo com a pontuação alcançada com base em três parâmetros distintos: a pertinência, a eficácia e a sustentabilidade.
 
A Fundação Paula Rego - "a artista portuguesa com maior prestígio internacional" - recebeu uma classificação negativa que a condenava à extinção, para mais tarde, após veementes protestos, obter a retificação de um erro flagrante. Por outro lado, como relata Luís Miguel Queirós, na edição do "Público" de 26 de agosto, a Fundação Calouste Gulbenkian - que só após protesto público saltou do 84.º para o 57.º lugar deste fabuloso "ranking" - iria ficar definitivamente colocada, em matéria de "pertinência/relevância", ligeiramente abaixo da "Fundação Social-Democrata da Madeira" e da "Fundação Caixa Agrícola de Leiria"!
E quanto a relatórios, falta o da execução fiscal do primeiro semestre deste ano, onde o mais grave não é a demonstração da impossibilidade, há muito anunciada, de atingirmos as metas de endividamento prometidas aos credores internacionais para o ano corrente. Grave, recorrendo ao eufemismo usado por Adriano Moreira na Universidade de Verão do PSD, é aquilo a que chamou "o limite da fadiga tributária". De entre as várias razões que podem explicar por que ficaram as receitas dos impostos tão longe do valor esperado - o recuo da atividade económica, a diminuição dos rendimentos das pessoas, o aumento do desemprego - a mais insidiosa de todas é o crescimento da economia paralela e da evasão fiscal.
 
Porque é o sinal de uma falência sistémica que ameaça os próprios fundamentos do processo de modernização da sociedade portuguesa iniciado com a revolução democrática de 1974 e acelerado pela integração europeia desde 1985. Ao longo destes 38 anos foi-se generalizando a consciência de que o cumprimento das obrigações fiscais era um dever e que ao aumento dos impostos e outras exigências cívicas correspondiam melhorias substanciais da qualidade de vida - na saúde, educação, segurança social, habitação, transportes - padrões de dignidade e de cidadania mais ambiciosos e, em resultado de tudo isso, uma sociedade mais aberta e solidária. Foram aquisições civilizacionais inestimáveis para um povo que nos 50 anos anteriores vivera alheado do Mundo e dos progressos democráticos conquistados na Europa, humilhado por uma ditadura agressiva, tacanha e provinciana, aparentada com os fascismos escorraçados pela vitória dos aliados na Segunda Guerra Mundial.
Sem políticas capazes de gerar confiança, sem motivos de esperança que projetem o futuro, é difícil resistir aos apelos da selva e à lógica do "salve-se quem puder". As dificuldades que enfrentamos requerem o envolvimento e a mobilização dos cidadãos se quisermos preservar a sociedade democrática que, embora tardiamente, conseguimos construir.
 
Retirada daqui