sábado, 4 de dezembro de 2010

O CADÁVER POLÍTICO MAIS EXUMADO

Nunca Sá Carneiro foi evocado com tanta sofreguidão como nestes últimos dias. Que lição se quererá retirar do passado em tempos de crise profunda?

O tempo que passou nos 30 anos que hoje se contam após o anúncio da morte de Francisco Sá Carneiro na televisão - na noite de 4 de Dezembro de 1980 - foi de um polémico esquecimento da sua mensagem política e da rebeldia na liderança que deixou para a História.

Não fosse a explosão que deitou abaixo a avioneta, mal levantou voo do aeroporto de Lisboa, e Sá Carneiro teria sido enterrado com a quase paz a que Amaro da Costa teve direito. Mais, nenhum dos dois teria tido direito a um instituto com o seu nome, nem as palavras ditas em vida teriam sido agarradas e abanadas com viva emoção em iniciativas partidárias, como passou a acontecer desde então.

Porque se proclama em vão o legado de Sá Carneiro quando na realidade toda a sua (pre)visão do futuro português foi sempre ignorada?

Porque está até hoje por apurar em definitivo a razão da sua morte? Foram precisas duas décadas para que se abandonasse a crença num acidente mediante a apresentação de provas de um atentado que, até agora, ainda vive num estertor ao debater-se por um inquérito e relatório finais. Que os actuais líderes políticos desdenham!

Será que Francisco Manuel Lumbrales de Sá Carneiro precisava de 30 anos para que o PSD e o CDS se juntassem numa primeira homenagem pública realizada em conjunto? Porquê só em 2010 os parceiros da antiga Aliança Democrática se reúnem para o celebrar, quando em três décadas não faltaram motivos para o fazer? Perguntas há muitas, porque esse é o modo como em Portugal se aprecia deixar cozer em lume brando a responsabilidade social e política.

Respostas?...

O reexumar do cadáver político de Sá Carneiro nos últimos dias, com a desculpa dos 30 anos da sua morte, deixa antever que irá ser de novo usado como inspiração para a área política PSD/CDS nos próximos tempos. Porque a movimentação que os dirigentes partidários e o Presidente da República irão executar no tabuleiro de xadrez político e económico que está a ser jogado em Portugal exige um herói e uma estratégia que funcionou no seu tempo.

Não é por acaso que o mito Sá Carneiro tem sido tão remexido e recordado nos últimos dias. Nem é preciso ser-se sábio para dizer que, se Sá Carneiro tivesse sobrevivido à explosão sobre Camarate, decerto teria uma solução para Portugal. Quem conviveu com aqueles tempos de política dura, numa incipiente democracia pós-25 de Abril de 1974, sabe que poucos tiravam obstinados coelhos da cartola como ele. Também é certo que para os portugueses mais novos, uma razoável parte do eleitorado que hoje se confronta com não-soluções para a crise, o legado de Sá Carneiro não serve de exemplo para nada. Para essa razoável parte do eleitorado, Sá Carneiro é tão passado como o Salazar que venceu o concurso dos portugueses mais famosos, mais conhecido que o Marcelo Caetano que combateu durante o seu primeiro fôlego político.

Os mais novos nem se lembram da primeira polémica com que se confrontou mal faleceu e que ninguém quer comentar. A de que, assim que se soube que o Cessna se espatifara sobre duas casas de um bairro limítrofe da capital, a nível nacional, estouraram foguetes a comemorar a sua morte.

"Não deixava ninguém indiferente", é o que diz o actual sucessor de Sá Carneiro sobre esta reacção. Pedro Passos Coelho, um dos líderes que está mais distante do legado do seu antecessor e que, quando comenta o peso de Sá Carneiro no partido, assume que só o pode recordar "como militante do PSD com responsabilidades especiais" e não como companheiro de percurso, mesmo que marcado pelos seus discursos.

Passos Coelho recorda estar em Chaves no momento do anúncio da morte: "O Sr. Flávio avisou-nos que a televisão estava a transmitir a notícia do acidente. A notícia apanhou-nos desprevenidos, com absoluta incredulidade e durante aqueles instantes em que nos adaptámos à notícia fomos surpreendidos por um ribombar de foguetes e morteiros que pessoas ligadas à extrema-esquerda tinham feito espoletar para mostrar a sua satisfação com o que tinha acabado de suceder. Isto tornou ainda mais impressionante toda a vivência daquela notícia".

Realmente, Sá Carneiro "não deixava ninguém indiferente" e, com o estrondo da sua morte, entrou para as páginas da História ao mesmo tempo que criou um vácuo político. Um vazio que é imediatamente disputado pelos políticos rivais, enquanto o PSD e a Aliança Democrática se confrontam com a diminuição drástica do horizonte de governação.

Ao PSD restou um mito para recordar. Uma mística para explorar em cada crise ou congresso. Um busto para personificar o político que modelou o perfil do que seria a partir de então um primeiro-ministro da democracia, mesmo que não tivesse sido capaz de o fazer como líder partidário, devido à sua imprevisibilidade e irrequietude mental.

Quem pretender empunhar de novo o mito Sá Carneiro deve questionar-se sobre a sua adaptação aos tempos actuais. Um líder impetuoso como ele já não passaria no crivo da opinião pública como acontecia naquele tempo de imaturidade e crudelidade política dos portugueses. A devassa dos seus ziguezagues de percurso fá-lo-iam cair rapidamente por irresponsabilidade em vez de serem entendidos como liderança forte. O oportunismo político de Sá Carneiro cairia por terra face a uma imprensa que já não se fascina com fogos fátuos como os dele. O eleitor não lhe daria o voto face a renúncias constantes aos cargos para que fora eleito. Não aceitaria que andasse a brincar ao tiro ao alvo, com os sobrinhos, com uma pistola reservada para a segurança pessoal. Nem que tivesse acidentes de carro por se achar piloto de corridas ou que autorizasse aterragens de avioneta perigosas. Na melhor das hipóteses, perdoar-lhe--iam que tivesse perdido a fé católica e a paixoneta por Snu, porque tinham motivo de conversa ao fim-de-semana.

Se não tivesse sido um mito, o que seria Sá Carneiro hoje? Um advogado retirado da política, a atender clientes num escritório do Porto, mesmo que reformado!

O futuro político de Francisco Sá Carneiro será sempre uma das questões que se colocam aos que lhe sobreviveram. Seja qual for a razão por que o fazem, a pergunta repete-se mais no seu caso do que na maioria das estrelas fugazes da democracia portuguesa.

O seu protagonismo político confunde-se com o seu feitio. As palavras que se repetem sobre a sua última personalidade política são: crispado, inquieto ou imprevisível. Nem sempre foi assim, e as opiniões sobre a sua pessoa variaram conforme os tempos. Em criança eram: bem-comportado, estudioso e religioso. Em adolescente: dançarino, protocolar e decidido. Como advogado: competente, profissional e inspirado. Mas, logo que aceita o convite para ser deputado pela Ala Liberal, nos tempos de Marcelo Caetano, os adjectivos mudam e aproximar-se-ão dos que o lembrarão na fase posterior aos 35 anos: contradição, autoconfiança e determinado.

A teimosia em levar em frente as suas ideias e propostas é grande, e quando Sá Carneiro não as consegue impor, raramente aceitará o facto de sair vencido. Será assim na Assembleia Nacional, onde é o primeiro deputado da Ala Liberal a não acabar o mandato e a desafiar o marcelismo com propostas inviáveis para o chefe de Governo.

Marcelo Caetano não aceitará as propostas de revisão constitucional em 1971 que prevejam a eleição por sufrágio universal do presidente da República; a PIDE não deixará de o vigiar, preocupada com as visitas a presos políticos; muitos deputados não verão com bons olhos a introdução de reformas tendentes a encaminhar o País para a democracia, e o debate para encontrar um solução para as três frentes de guerra no Ultramar será um beco sem saída.

A sua atitude de se meter em bicos de pés é repetida várias vezes neste seu primeiro período de intervenção, designadamente durante o tempo em que assume a liderança parlamentar da Ala Liberal. Já o fora ao obrigar Marcelo Caetano a aceitar o fim do exílio do bispo do Porto D. António Ferreira Gomes, ou as invectivas constantemente censuradas contra o re-gime publicadas no semanário Expresso. Ainda liderará o convite ao general António de Spínola para se candidatar às eleições presidenciais, nome com que pretende substituir o sempre eterno candidato do regime, Américo Tomás.

Após a renúncia ao mandato na Ala Liberal, imporá mais um acto de rebeldia: a formação de um novo partido político. Pretende com a sua fundação, a implosão da quase situação de partido único no fim da ditadura salazarista. Será essa estrutura em preparação que logo saltará para a praça pública a seguir à Revolução dos Cravos e que terá a sigla PPD, o Partido Popular Democrático, obrigado a não incluir a palavra Cristão no nome por ter sido já anunciado outro com o conceito.

Se a impaciência com que responde a cada obstrução às suas ideias políticas e sociais foi notória antes do 25 de Abril, 30 anos após a sua morte já se pode reflectir sobre esse comportamento, principalmente quando somado ao ziguezague que desenhará no seu percurso político até 4 de Dezembro de 1980.

Outra divergência que merecerá análise em Francisco Sá Carneiro será a questão religiosa. Se havia quem não duvidasse em pequeno de que o seu futuro seria a vida eclesiástica, a adolescência haveria de confirmar que não seria padre mas que estaria muito ligado à Igreja Católica nas primeiras décadas da sua vida, mesmo que na Assembleia Nacional tivesse apresentado uma proposta para legalizar o divórcio.

Era muito beato em criança, leitor fervoroso da Bíblia e assíduo frequentador da missa, e assim continuou até à vida adulta. Ainda recém--casado com Isabel, Sá Carneiro foi um dos principais dinamizadores da iniciativa da Igreja, os Casais de Nossa Senhora, em que se debatiam questões religiosas e a integração na vida do dia-a-dia. No entanto, as mudanças da Igreja Católica eram radicais após o Concílio Vaticano II e a mensagem que o papa João XXIII haveria de passar com esta reunião magna era a de que havia várias interpretações do papel dos católicos. Maior participação e o fim de hábitos tradicionais sacudiram muitos fiéis, entre os quais o próprio Sá Carneiro, que iniciou uma mudança no seu pensamento e acção. A cumplicidade da Igreja para com o regime e a injustiça que a fé católica permitia existir no mundo abalaram Sá Carneiro e exigiram-lhe outra actuação social. Assim aconteceu a aproximação a Frei Bento Domingues e a participação nos debates da cooperativa Confronto, entre outras situações conflituosas.

E Sá Carneiro, mesmo mantendo a fé e o espírito católico, mudou tanto que se poderá dizer que a sua entrada na política se faz pela porta da religião. Mesmo que, ao tempo da morte, a religião fosse em si quase só passado. Outro ziguezague.

Após o 25 de Abril, a presença de Francisco Sá Carneiro implanta-se logo ao início. Ainda não tinham passado cem horas sobre o golpe e já desarrumava a sala de estar da sua casa para dar uma entrevista à RTP, para marcar presença e anunciar PPD. O partido é formalizado logo a seguir e a marca política imposta a ferro e fogo no próprio partido e na sociedade portuguesa.

Até adoecer e ser operado a 19 de Fevereiro de 1975, Sá Carneiro vai mostrar a fibra da liderança no combate ao PCP e aos militares do MFA que pendem para a esquerda, cha-ma que estranhamente se apaga e quase se extingue no período pós- -operatório. Uma depressão, que diz ter uma razão psicológica, afasta-o da arena política. Londres é o destino do exílio, ponderará viver no Brasil, e regressar a Portugal é a uma situação que despreza. Outro ziguezague na trajectória política, que só será corrigido no fim do ano ao anunciar com pompa e circunstância a volta.

Empurra o presidente do PSD que o substituiu e iniciará a luta política pela qual ficou mesmo conhecido. Provocará a primeira das duas divisões no PSD, tenta seduzir Mário Soares para uma coligação e acabará com Freitas do Amaral na Aliança Democrática, afina o tiro contra o presidente Ramalho Eanes. Numa sucessão de ziguezagues, incompreensíveis até para os seus correligionários do PSD, que muitas vezes o acusam de ser déspota e egoísta, ainda desiste da presidência do PSD para voltar a lutar por ela, será eleito primeiro-ministro e repetirá a vitória em segunda eleição.

Em Maio de 1978, Sá Carneiro colocará a cereja no bolo da sua relação "extraconjugal": leva a "namorada" Snu ao Conselho Nacional de Portalegre e, entre as críticas, vai às compras. O fim do casamento está anunciado. Mais um ziguezague que o próprio bispo D. António Ferreira Gomes considera preocupante pois Sá Carneiro alega que ainda não tinha a personalidade formada quando se casou de mo-do a obter o divórcio. Tantos ziguezagues.

Trinta anos após a morte de Sá Carneiro há muitas perguntas no ar. A quem importa o legado é uma de-las, mesmo que no PSD sejam poucos os que se beneficiaram da lição política, a não ser no constante ziguezague das suas posições e de uma intervenção política errática que o ex-presidente inaugurou com a liderança.

O seu cadáver político, no entanto, continua a ser exumado com sofreguidão. É dado como exemplo quase sempre para o bom e serve para castigar comportamentos. Raros são os que negam o histórico e menos os que publicamente o criticam.

Conforme se poderá ler nas entrevistas que se seguem, numa tentativa de se fazer o retrato de Sá Carneiro à luz dos 30 anos, o seu legado é sempre referido. São poucas as reticências ao papel e à personalidade, bastantes os elogios e grande o perdão. Entrou para a História

João Céu e Silva, aqui