sábado, 4 de dezembro de 2010

"NUNCA ME CANSO DE FALAR DE SÁ CARNEIRO"

Conceição Monteiro não foi apenas a secretária de Francisco Sá Carneiro. Foi também sua amiga e confidente.

Trinta anos depois da morte do carismático líder do PSD, guarda memórias vívidas dos anos de colaboração com o seu melhor amigo. "Nunca me canso de falar no Francisco." E diz sofrer por não ver no PSD qualquer indício do legado do antigo primeiro-ministro.

Um dos membros do corpo de segurança de Francisco Sá Carneiro bateu à porta à hora do jantar. Conceição Monteiro, que então vivia com os pais na casa da família, no Restelo, abriu e viu um homem angustiado, cabisbaixo. "Tenho uma notícia muito triste para lhe dar", disse. A secretária do primeiro-ministro não acreditou. Tratava-se de um engano, certamente, pois o Cessna já partira para o Porto há quase três horas. Houve um atraso, explicou-lhe o segurança. Conceição não teve tempo para reagir ao choque. Lá dentro, numa das salas, o telefone tocou. Ela correu para atender e ouviu Freitas do Amaral, que estava prestes a partir para o último comício da campanha, em Setúbal, perguntar-lhe se era verdade. Sim, morreram todos.

"No dia 4 de Dezembro morreu o meu melhor amigo." As lembranças dolorosas daquela noite de 1980 não esmorecem a eloquência de Conceição Monteiro quando a conversa se centra em Francisco Sá Carneiro. "Nunca me canso de falar no Francisco", diz, sentada no sofá da sua sala de estar, num rés-do-chão na zona do Restelo, onde escolheu viver depois de a família vender a casa dos pais. Sá Carneiro está também nesta sala. Sobre uma pequena mesa, iluminado por um candeeiro, há um retrato a preto e branco do fundador do PSD, a mão a apoiar o rosto, o olhar brilhante e pensativo.

A ligação de Conceição Monteiro e Sá Carneiro não se traduz apenas nos seis anos e meio de colaboração e amizade, mas é também notória nas memórias vívidas que ela guarda como um bem precioso. "Foram anos maravilhosos" e sem um único dia de descanso. De 1974 a 1980, Conceição recusou sempre usufruir do período de férias. Abriu apenas uma excepção, a convite de Snu Abecassis, para uma curta estadia no Sul de Espanha, em Agosto de 1976, numa altura em que o romance entre o líder do PPD e a responsável pela editora D. Quixote já era público.

Aos 76 anos, Conceição já perdeu a conta ao número de vezes que contou esta história, mas fá-lo sempre com entusiasmo. Na noite de 28 de Abril de 1974 decidiu mudar a sua vida, até então concentrada no trabalho doméstico, depois de ouvir Sá Carneiro numa entrevista à RTP. "No final, lembro-me de dizer a uma amiga que aquele país de que ele falara era o país onde eu queria viver." A Revolução acontecera há poucos dias, o país estava em êxtase e ela, com 40 anos, decidira que chegara o momento de trabalhar por esse país que Sá Carneiro desejava.

Na manhã seguinte escreveu uma carta a Francisco Pinto Balsemão, seu primo. "Disse-lhe que tinha conhecimento de que ele iria fundar um partido, juntamente com outras pessoas, e que tinha 24 horas disponíveis para trabalhar com Francisco Sá Carneiro." Mas nem Sá Carneiro lhe era totalmente desconhecido, nem ela tinha uma visão marciana da política. "A primeira vez que pude votar foi nas eleições de 1969 e vivi isso com imensa alegria, sobretudo porque pude votar no Zé Pedro Pinto Leite [deputado da Ala Liberal], que era meu amigo de infância. Portanto, fui seguindo o trabalho da Ala Liberal e o Francisco não me era totalmente desconhecido."

Embora a sua iniciação na vida político-partidária só tenha acontecido em 1974, Conceição há muito que se interessava pelo assunto, conhecendo bem os contornos da política salazarista graças às longas tardes de conversa com o seu sogro, Armindo Monteiro. Antigo ministro de Salazar e ex-embaixador em Londres, Monteiro assumira a ruptura com o Presidente do Conselho durante a Segunda Guerra Mundial, devido à dúbia neutralidade de Lisboa, dedicando-se depois ao ensino e à administração de várias empresas. "Da sua experiência em Londres contava-me como era o sistema britânico. Mas falava também dos problemas das colónias, que deviam ser tratadas de outra maneira. Foi um dos primeiros a falar em autodeterminação."

Um dossier precioso
Nos primeiros dia de Maio, Conceição recebeu o recado de Balsemão: que estivesse na manhã seguinte na sede do PPD, no Largo do Rato. Quando chegou ao antigo ginásio da Legião Portuguesa - um open space com gabinetes minúsculos e um pequeno consultório médico -, decorria uma sessão de esclarecimento. Ela sentou-se e ficou até ao fim. Sá Carneiro, então ministro sem pasta do Governo Palma Carlos, estava atrasado por causa de um Conselho de Ministros mais demorado.

Chegou para o encerramento da sessão. "Fiquei impressionada quando o ouvi falar para a assistência. Olhava sempre para as pessoas, nunca desviava o olhar." No final foram apresentados e cumprimentaram-se cordialmente. Só quando Sá Carneiro se demitiu do Governo é que ele a convidou para ser sua secretária. "Estava a trabalhar como telefonista quando uma funcionária me avisou de que ele queria falar comigo. Senti assim uma coisa... Julguei logo que tinha feito alguma coisa errada.

Entrei no gabinete e ele perguntou-me se eu queria colaborar com ele. Senti o coração cair. Respondi-lhe que sim, mas que não sabia escrever à máquina. Ele disse que havia ali muita gente que o sabia fazer. Foi o primeiro dia de seis anos e meio maravilhosos."

Durante o período em que o líder do PPD estava no Governo, Conceição fez de tudo um pouco na sede do partido. "Aquilo estava um caos. A minha primeira tarefa foi ir a casa buscar baldes e esfregonas para fazer uma boa limpeza. Depois, comecei a receber pessoas e a contactar com os jornalistas porque falo inglês, francês e espanhol e meio mundo estava em Lisboa. Lembro-me que fui à Papelaria Fernandes comprar um dossier para apontar os números de telefone e moradas."

Conceição levanta-se e sai da sala, pede para esperarmos um pouco. Quando regressa traz consigo o pequeno dossier, cuja capa tem ainda um autocolante das primeiras eleições autárquicas com a ilustração de um lavrador, encimado pela frase "O futuro da terra está nas tuas mãos". Não há páginas em branco: são centenas de nomes, escritos a lápis e caneta, que lhe recordam os dias intensos dos primeiros anos do partido.

Conceição conserva ainda algum arquivo pessoal de Sá Carneiro - correspondência, fotografias e boletins médicos - que, depois da sua morte, será reunido ao espólio que doou a José Pacheco Pereira. No início deste ano, e depois de muita ponderação, decidiu dar ao historiador e deputado do PSD um vasto conjunto de documentos, livros, cassetes e bobinas que faziam parte do acervo pessoal do antigo primeiro-ministro e que ela guardava há muitos anos em sua casa. Escolheu Pacheco Pereira porque entendeu que "tudo ficaria muito bem entregue". A alternativa seriam os arquivos do PSD, mas temeu "o risco de se perderem". "Pensei muito nesta decisão. Sabia que Pacheco Pereira tinha na Marmeleira tudo pronto para receber este arquivo." Encheu três malas e pediu ao historiador para ir buscá-las. "É a minha vida que aqui está", disse-lhe.

Eurico de Melo, o sucessor
Um ano depois de ter começado a trabalhar com Sá Carneiro, Conceição era já amiga e confidente do líder do PPD. "Eram quase 24 horas por dia, o gabinete tinha um staff muito pequeno, ele estava sozinho em Lisboa e não tinha um apoio familiar diário." Por ele, aceitou trabalhar com Emídio Guerreiro [líder interino do PPD] quando Sá Carneiro viajou para Londres, onde foi submetido a uma cirurgia.

Durante o período de convalescença, a que se seguiu uma estadia no Sul de Espanha, Conceição telefonava-lhe quase todos os dias - contava o que diziam os jornais e informava-o sobre a vida interna do partido, nomeadamente a aproximação de alguns dirigentes ao Grupo dos Nove, facção mais moderada do Movimento das Forças Armadas.

Nunca imaginou que Sá Carneiro pudesse não querer regressar a Portugal, apesar de ele ter ponderado ir viver para o Brasil. No fim do Verão de 1975, tudo se recompôs: ele regressou a Lisboa e recuperou a liderança do partido, vencendo a oposição interna num duríssimo conselho nacional. Alguns meses depois, Conceição foi uma das primeiras pessoas a saber da relação entre Sá Carneiro e Snu Abecassis.

"A palavra que melhor a define é tranquilidade", lembra, "porque transmitia uma grande tranquilidade e suavidade à sua volta. Sempre adorei a maneira como organizava a sua casa e nunca a ouvi levantar a voz". Guardou segredo até às eleições legislativas, em Abril, tal como Sá Carneiro lhe pedira, receando que a notícia do romance prejudicasse o partido nas urnas.

Não só a sua vida afectiva não interferiu na escolha do eleitorado, como o seu projecto político, a Aliança Democrática (AD), que lhe valeu muitos dissabores dentro do PSD, lhe deu duas vitórias consecutivas e maioritárias nas eleições de 1979 e 1980.

Das relações de Sá Carneiro com Ramalho Eanes, então Presidente da República, Conceição recorda a promessa do primeiro-ministro: se Eanes vencesse as eleições de Dezembro, derrotando o candidato da AD, Soares Carneiro, ele apresentaria a demissão. "O objectivo dele era regressar à bancada do PSD e fazer uma revisão constitucional. E sabia que teria o apoio do PS pelo menos num ponto: o fim do Conselho da Revolução." Sá Carneiro escolhera já um sucessor para a liderança temporária do executivo, pois previa regressar após a revisão da Constituição: Eurico de Melo, então ministro da Administração Interna. "Era uma pessoa muito amiga do Francisco, com que ele se dava muito bem. E sabia que seria primeiro-ministro sempre em colaboração com ele." Sá Carneiro não pôde cumprir a promessa.

Depois de 4 de Dezembro de 1980, Conceição continuou a trabalhar como funcionária do PSD, tendo ocupado as funções de chefe de gabinete do grupo parlamentar entre 1981 e 1983. Quando o actual Presidente Aníbal Cavaco Silva, que ela conhecera no Governo AD como ministro das Finanças, ganhou a liderança do partido, em 1985, convidou-a para trabalhar com ele.

"Perguntou-me se estava disponível para trabalhar com ele como tinha trabalhado com o Francisco. Aceitei. Eram muito diferentes, mas tinham traços em comum, como o empenho em tornar o país melhor e mais moderno." Na primeira maioria absoluta de Cavaco, Conceição foi eleita deputada por Lisboa, mantendo-se na bancada social-democrata até 1995. "Adorei. Senti-me muito realizada e orgulhosíssima."

Dois anos depois de sair do Parlamento, abandonou também as suas funções no partido. Hoje olha para o PSD com alguma mágoa porque diz não ver nada da herança de Sá Carneiro. "Sofro tanto por isso. O Francisco tinha uma maneira de fazer política que me encantava. Para ele as pessoas estavam no centro das suas acções, tentava tudo para melhorar a vida dos portugueses. Hoje o interesse está mais centrado nos grandes discursos, no mediatismo. Nas reuniões do conselho nacional evita-se o debate. No nosso tempo não era assim: as pessoas não diziam améns a tudo."

Maria José Oliveiraaqui