1. Acho sempre muita piada às análises
eleitorais que começam por "os portugueses quiseram dizer". Desta vez
está-se a levar um bocadinho longe de mais o exercício, digamos assim.
Há
quem jure que a maioria dos portugueses quis rejeitar a "política de
austeridade", outros que garantem que o que se quis foi dar à PAF o
governo e ao PS a obrigação de colaborar, outros que juram a pés juntos
que quem votou no PS disse que não queria acordos com o BE e o PCP ou
mesmo que quem votou nestes não queria um acordo com o PS.
2. Pode ser pertinente
analisar as reais motivações de qualquer partido. É provável que o PCP
esteja mais interessado em evitar mais privatizações nos transportes -
obstando a que o PCP, através da CGTP, consiga parar o país sempre que
queira - ou travar o crescimento do BE ou outra razão qualquer. Mas seja
o PCP, seja o BE, o PS, o PSD ou o CDS, o que conta é o que declaram
querer fazer num eventual programa de governo.
Eu
tenho muitas dúvidas da súbita mudança de opinião, ou pelo menos do
adormecimento de ideias de alguém que defendeu outras até ontem, mas não
cabe a ninguém avaliar da veracidade de um eventual compromisso se esse
for assumido em moldes claros.
Levante-se,
aliás, o partido, o político que não teve súbitas mudanças de ideias, o
que não teve de adaptar as suas convicções às circunstâncias. Será
preciso recordar linhas vermelhas que eram inultrapassáveis?
Cortes
impensáveis de salários e pensões? Posições em relação à Europa? E, a
propósito, então a necessidade de compromissos era letra morta?
Uma
coisa é alguém querer um governo do PS com o BE e o PCP - a mim não me
agrada rigorosamente nada ter o BE e o PCP no governo; basta-me saber
das até agora vontades de nacionalizar ou do controlo público dos meios
de produção e de me socorrer da minha memória de tempos idos para me
sentir preocupado.
Outra coisa,
completamente diferente, é basear a luta contra a existência de um
governo fazendo análises das intenções não expressas dos partidos que o
constituem. Sendo partidos que estão dispostos a respeitar a
Constituição, as leis da República e os compromissos internacionais a
que o Estado português está vinculado, é incompreensível alguém
questionar a possibilidade de irem para o governo. Quem defender o
contrário não acredita, pura e simplesmente, na democracia
representativa.
3. Vale a pena repetir:
quem obtiver uma maioria estável no Parlamento pode e deve governar.
Mas convém não esquecer que quem ganhou as eleições foi a Coligação.
Uma
solução que passe por um acordo entre PS, BE e PCP terá a fragilidade
própria de ser liderada por um partido que perdeu e a que lhe advém de
ter de acomodar programas partidários tão diferentes. Aliás, no caso
desses três partidos se entenderem para governar, sobretudo por essas
diferenças, a necessidade de um acordo transparente, inequívoco e que
garanta quatro anos de governação é fundamental, é mesmo condição sine
qua non.
Outra questão fulcral é a
necessária presença dos três partidos no governo. Se houver acordo PS,
BE, PCP, têm todos de participar no governo. Um executivo só do PS seria
por definição muitíssimo mais frágil, basta voltar a lembrar que teve
apenas 32%. Aí sim, a legitimidade política desse governo estaria
seriamente debilitada e seria compreensível que Cavaco Silva não
aceitasse essa solução e optasse pela Coligação mesmo em minoria.
O
BE e o PCP não podem ter um pé no governo e outro fora, ou querem de
corpo inteiro fazer parte de uma solução e romper com o seu passado de
mero protesto ou, aí sim, há dúvidas fundadas do empenho dos dois
partidos.
4. Corre profusamente a
versão de que a coligação, como vencedora das eleições, deve ser
convidada a formar governo. Mas terá alguma lógica formar um governo,
convidar ministros e secretários de Estado, se, no caso improvável, os
outros três partidos tiverem uma solução governativa apoiada pela
maioria do Parlamento, devidamente fundamentada e absolutamente clara?
Que procedimento constitucional obriga o Presidente da República a dar
posse a um governo que sabe ir ser derrubado logo que abra a sessão
legislativa, sabendo que tem uma que cumpre os requisitos que ele
próprio estabeleceu? Claro está, o Presidente pode recusar-se a aceitar
uma solução mesmo que ela seja maioritária no Parlamento, pode até
recusar-se a procurar soluções de governabilidade até ao dia em que se
vai embora. Mas é bom que saiba que nesse caso não respeitará os
cidadãos que elegeram aqueles deputados.
Como
não respeitaria os portugueses se deixasse um governo de gestão até
abandonar o cargo. Nesse caso, não só não respeitaria os cidadãos, como
seria o autor moral e material de um mais que certo descalabro
orçamental e de deixar o país numa situação muito difícil.
Pedro Marques Lopes, aqui