domingo, 18 de outubro de 2015

PARAPSICOLOGIA, DEMOCRACIA E GOVERNO

1. Acho sempre muita piada às análises eleitorais que começam por "os portugueses quiseram dizer". Desta vez está-se a levar um bocadinho longe de mais o exercício, digamos assim.

Há quem jure que a maioria dos portugueses quis rejeitar a "política de austeridade", outros que garantem que o que se quis foi dar à PAF o governo e ao PS a obrigação de colaborar, outros que juram a pés juntos que quem votou no PS disse que não queria acordos com o BE e o PCP ou mesmo que quem votou nestes não queria um acordo com o PS. 

Curiosamente, os que mais vezes interpretam intenções são os que não votaram nos que analisam. Entendamo-nos: a única interpretação possível da intenção do eleitor está plasmada na composição do Parlamento. O resto é parapsicologia.

2. Pode ser pertinente analisar as reais motivações de qualquer partido. É provável que o PCP esteja mais interessado em evitar mais privatizações nos transportes - obstando a que o PCP, através da CGTP, consiga parar o país sempre que queira - ou travar o crescimento do BE ou outra razão qualquer. Mas seja o PCP, seja o BE, o PS, o PSD ou o CDS, o que conta é o que declaram querer fazer num eventual programa de governo.

Eu tenho muitas dúvidas da súbita mudança de opinião, ou pelo menos do adormecimento de ideias de alguém que defendeu outras até ontem, mas não cabe a ninguém avaliar da veracidade de um eventual compromisso se esse for assumido em moldes claros.

Levante-se, aliás, o partido, o político que não teve súbitas mudanças de ideias, o que não teve de adaptar as suas convicções às circunstâncias. Será preciso recordar linhas vermelhas que eram inultrapassáveis? 

Cortes impensáveis de salários e pensões? Posições em relação à Europa? E, a propósito, então a necessidade de compromissos era letra morta?

Uma coisa é alguém querer um governo do PS com o BE e o PCP - a mim não me agrada rigorosamente nada ter o BE e o PCP no governo; basta-me saber das até agora vontades de nacionalizar ou do controlo público dos meios de produção e de me socorrer da minha memória de tempos idos para me sentir preocupado.

Outra coisa, completamente diferente, é basear a luta contra a existência de um governo fazendo análises das intenções não expressas dos partidos que o constituem. Sendo partidos que estão dispostos a respeitar a Constituição, as leis da República e os compromissos internacionais a que o Estado português está vinculado, é incompreensível alguém questionar a possibilidade de irem para o governo. Quem defender o contrário não acredita, pura e simplesmente, na democracia representativa.

3. Vale a pena repetir: quem obtiver uma maioria estável no Parlamento pode e deve governar. Mas convém não esquecer que quem ganhou as eleições foi a Coligação.

Uma solução que passe por um acordo entre PS, BE e PCP terá a fragilidade própria de ser liderada por um partido que perdeu e a que lhe advém de ter de acomodar programas partidários tão diferentes. Aliás, no caso desses três partidos se entenderem para governar, sobretudo por essas diferenças, a necessidade de um acordo transparente, inequívoco e que garanta quatro anos de governação é fundamental, é mesmo condição sine qua non.

Outra questão fulcral é a necessária presença dos três partidos no governo. Se houver acordo PS, BE, PCP, têm todos de participar no governo. Um executivo só do PS seria por definição muitíssimo mais frágil, basta voltar a lembrar que teve apenas 32%. Aí sim, a legitimidade política desse governo estaria seriamente debilitada e seria compreensível que Cavaco Silva não aceitasse essa solução e optasse pela Coligação mesmo em minoria.

O BE e o PCP não podem ter um pé no governo e outro fora, ou querem de corpo inteiro fazer parte de uma solução e romper com o seu passado de mero protesto ou, aí sim, há dúvidas fundadas do empenho dos dois partidos.

4. Corre profusamente a versão de que a coligação, como vencedora das eleições, deve ser convidada a formar governo. Mas terá alguma lógica formar um governo, convidar ministros e secretários de Estado, se, no caso improvável, os outros três partidos tiverem uma solução governativa apoiada pela maioria do Parlamento, devidamente fundamentada e absolutamente clara? Que procedimento constitucional obriga o Presidente da República a dar posse a um governo que sabe ir ser derrubado logo que abra a sessão legislativa, sabendo que tem uma que cumpre os requisitos que ele próprio estabeleceu? Claro está, o Presidente pode recusar-se a aceitar uma solução mesmo que ela seja maioritária no Parlamento, pode até recusar-se a procurar soluções de governabilidade até ao dia em que se vai embora. Mas é bom que saiba que nesse caso não respeitará os cidadãos que elegeram aqueles deputados.

Como não respeitaria os portugueses se deixasse um governo de gestão até abandonar o cargo. Nesse caso, não só não respeitaria os cidadãos, como seria o autor moral e material de um mais que certo descalabro orçamental e de deixar o país numa situação muito difícil.

Pedro Marques Lopes, aqui