sábado, 5 de setembro de 2015

O ‘25 DE ABRIL’, A TAL PEDRA FILOSOFAL DA POLÍTICA NACIONAL



Veremos alçados ao Poder analfabetos, meninos mimados, escroques de toda a espécie que conhecemos de longa data. (…)
Restam-nos o sol, o turismo, a pobreza crónica e as divisas da emigração, mas só enquanto durarem.

Marcello Caetano

Cidade do Lobito, 25 de Abril de 1974.

Com treze anos de idade, eu não sabia o que levava os professores a cochicharem tanto pelos corredores, nem conhecia a razão pela qual havia sido cancelada toda a actividade escolar. Mas, para quem frequentava um liceu a escassas centenas de metros do Oceano Atlântico, nada disso tinha importância alguma.

Nessa tarde, a praia do Compão foi invadida por muitos alunos e foi da boca de um lingrinhas do 7º (actual 11º) ano, que usava uns óculos com lentes-tipo-fundos-de-garrafas e que até para a praia levava os livros escolares, que de sorvete em punho e sentado na areia, ouvi pela primeira vez expressões como “fascismo”, “regime política e socialmente esgotado”, “guerra colonial sem solução militar à vista”, ou “reivindicações políticas”.

Sabendo do que falava, o fuinha logo acrescentou que fora este o mote para que o movimento dos capitães de Abril tivesse desencadeado operações militares, sob a senha de uma festivaleira canção, as quais culminaram sem derramamento de sangue no dia em que uma pastelaria da baixa de Lisboa comemorava mais um aniversário da sua laboração com a oferta de flores aos clientes. Disse-nos também o borbulhoso caixa-de-óculos que a funcionária encarregada de as comprar se decidira pelos cravos vermelhos, distribuindo-os também pelos militares por que passava, que os colocaram nos canos das espingardas, permitindo à comunicação social a obtenção de imagens que logo correram o mundo, convertendo, deste modo, o cravo vermelho no símbolo da “revolução dos cravos”.

Passado pouco mais de um ano, em início de Agosto de 1975, a guerra instalou-se na cidade atulhada de sol­da­dos de cara feia e armados até aos dentes. Durante algumas noites, vi os riscos das balas tracejantes de incessantes tiroteios a atravessar o céu e ouvi morteiros a cair com estrondo, semeando rastos de morte e de destruição.

Este clima de intensificação de conflitos, que se alastrou de forma indiscriminada à generalidade das cidades, acabou por precipitar um processo de descolonização que conduziu ao dramático regresso de cerca de um milhão de retornados que se tinham fixado no ultramar, a um exaurido e impreparado Portugal onde a maioria aterrou ou desembarcou com parcos teres e haveres em grandes caixotes de madeira maciça.

Pessoalmente, não passei por isso, e tanto a minha família como eu fomos acolhidos por consanguíneos maternos que solidariamente nos garantiram cama e mesa com inexcedível hospitalidade. Mas foram aos milhares os portugueses que, estigmatizados à chegada, logo foram rotulados como sendo “de segunda” por concidadãos representados na assembleia constituinte, por quem aludiu à sua decisão e vontade, para consagrar constitucional e maioritariamente a abertura de caminho para uma sociedade socialista.

Volvidas quatro décadas, são cada vez mais as dúvidas que se suscitam sobre o devir da revolução de Abril, aumentando em cada ano o número dos que afirmam que a ditadura política foi meramente substituída por uma ditadura económica, tal a descrença dos cidadãos nas instituições e nos princípios democráticos, num país que, apesar de ter valores humanos de referência no âmbito da engenharia, da arquitectura, da pintura, da literatura, da ciência, do desporto, da medicina, das artes plásticas, da investigação científica, e em tantas outras áreas do conhecimento, mantém um poder político fragmentado e vulnerável aos interesses individuais ou corporativos, gerando políticos que em nome da disciplina partidária até ofendem a própria consciência e onde, como alguém escreveu um dia destes, a obediência redime, a cabeça baixa salva e a submissão leva à vitória.

Apesar de tudo, continuo a acreditar que, mesmo com limitações, a democracia é, ainda assim, o regime que melhor garante os direitos humanos e o desenvolvimento dos povos. Mas para que possa ser dada resposta eficaz às exigências deste tempo, é exigível que cada português combata não só a anomia cívica mas principalmente a manipulação, a intolerância e a vitimização, melhorando o exercício democrático da política, pois só assim será possível construir um Portugal mais justo, mais desenvolvido e mais capaz de responder com eficácia à exigência do tempo que corre.

Afinal, pode muito bem ser esta a tal pedra filosofal da política nacional por todos almejada, mas que em 25 de Abril de 1974 nunca havia, sequer, sido imaginada por um adolescente de treze anos, naquela que à data era conhecida como a sala de visitas da actual República Popular de Angola. Mas estará o nacional-comodismo verdadeiramente disposto a isso?