Veremos alçados ao Poder analfabetos, meninos mimados, escroques de
toda a espécie que conhecemos de longa data. (…)
Restam-nos o sol, o turismo, a pobreza
crónica e as divisas da emigração, mas só enquanto durarem.
Marcello Caetano
Cidade do Lobito, 25 de Abril de
1974.
Com treze anos de idade, eu não
sabia o que levava os professores a cochicharem tanto pelos corredores, nem
conhecia a razão pela qual havia sido cancelada toda a actividade escolar. Mas,
para quem frequentava um liceu a escassas centenas de metros do Oceano Atlântico,
nada disso tinha importância alguma.
Sabendo do que falava, o fuinha
logo acrescentou que fora este o mote para que o movimento dos capitães de
Abril tivesse desencadeado operações militares, sob a senha de uma festivaleira
canção, as quais culminaram sem derramamento de sangue no dia em que uma
pastelaria da baixa de Lisboa comemorava mais um aniversário da sua laboração
com a oferta de flores aos clientes. Disse-nos também o borbulhoso
caixa-de-óculos que a funcionária encarregada de as comprar se decidira pelos
cravos vermelhos, distribuindo-os também pelos militares por que passava, que
os colocaram nos canos das espingardas, permitindo à comunicação social a
obtenção de imagens que logo correram o mundo, convertendo, deste modo, o cravo
vermelho no símbolo da “revolução dos cravos”.
Passado pouco mais de um ano, em
início de Agosto de 1975, a guerra instalou-se na cidade atulhada de soldados
de cara feia e armados até aos dentes. Durante algumas noites, vi os riscos das
balas tracejantes de incessantes tiroteios a atravessar o céu e ouvi morteiros
a cair com estrondo, semeando rastos de morte e de destruição.
Este clima de intensificação de
conflitos, que se alastrou de forma indiscriminada à generalidade das cidades,
acabou por precipitar um processo de descolonização que conduziu ao dramático
regresso de cerca de um milhão de retornados que se tinham fixado no ultramar,
a um exaurido e impreparado Portugal onde a maioria aterrou ou desembarcou com
parcos teres e haveres em grandes caixotes de madeira maciça.
Pessoalmente, não passei por isso,
e tanto a minha família como eu fomos acolhidos por consanguíneos maternos que
solidariamente nos garantiram cama e mesa com inexcedível hospitalidade. Mas
foram aos milhares os portugueses que, estigmatizados à chegada, logo foram
rotulados como sendo “de segunda” por concidadãos representados na assembleia
constituinte, por quem aludiu à sua decisão e vontade, para consagrar
constitucional e maioritariamente a abertura de caminho para uma sociedade
socialista.
Volvidas quatro décadas, são
cada vez mais as dúvidas que se suscitam sobre o devir da revolução de Abril,
aumentando em cada ano o número dos que afirmam que a ditadura política foi
meramente substituída por uma ditadura económica, tal a descrença dos cidadãos
nas instituições e nos princípios democráticos, num país que, apesar de ter
valores humanos de referência no âmbito da engenharia, da arquitectura, da
pintura, da literatura, da ciência, do desporto, da medicina, das artes
plásticas, da investigação científica, e em tantas outras áreas do
conhecimento, mantém um poder político fragmentado e vulnerável aos interesses
individuais ou corporativos, gerando políticos que em nome da disciplina
partidária até ofendem a própria consciência e onde, como alguém escreveu um
dia destes, a obediência redime, a cabeça baixa salva e a submissão leva à
vitória.
Apesar de tudo, continuo a
acreditar que, mesmo com limitações, a democracia é, ainda assim, o regime que
melhor garante os direitos humanos e o desenvolvimento dos povos. Mas para que
possa ser dada resposta eficaz às exigências deste tempo, é exigível que cada
português combata não só a anomia cívica mas principalmente a manipulação, a
intolerância e a vitimização, melhorando o exercício democrático da política,
pois só assim será possível construir um Portugal mais justo, mais desenvolvido
e mais capaz de responder com eficácia à exigência do tempo que corre.
Afinal, pode muito bem ser esta
a tal pedra filosofal da política nacional por todos almejada, mas que em 25 de
Abril de 1974 nunca havia, sequer, sido imaginada por um adolescente de treze anos,
naquela que à data era conhecida como a sala de visitas da actual República
Popular de Angola. Mas estará o nacional-comodismo verdadeiramente disposto a
isso?