quarta-feira, 2 de setembro de 2015

JOB

O que o Livro de Job diz já chega para muito no que respeita ao sofrimento. E à estupidez. O Livro de Job é mesmo um grande escrito sobre a estupidez humana.

Há escritos que parecem conter tudo o que se pode dizer de essencial sobre uma determinada matéria. 

Tome-se, por exemplo, o sofrimento. Conhecemos directamente o sofrimento ao longo das nossas vidas, e desde o princípio, de múltiplas maneiras. E conhecemo-lo indirectamente através dos outros. As duas formas de conhecimento encontram-se, é claro, tão ligadas em tantos casos, quando o sofrimento dos outros vem de nós, e o nosso dos outros, que é difícil separá-las absolutamente.  

Para além disso, a arte – a poesia, a música, o romance, a pintura, os filmes, tudo – fala-nos do sofrimento. E a televisão expõem-no, devida ou indevidamente, mais indevida do que devidamente, várias vezes ao dia. Estamos, literalmente, rodeados de sofrimento. Mas, na medida em que há algo de essencial que se deixa exprimir no capítulo sob a forma de palavras, não conheço escrito que melhor o faça, de um modo indisfarçadamente humano, do que o Livro de Job.

A história começa, como se sabe, com um desafio de Satanás a Deus. Job é um homem de uma impecável rectidão e temente a Deus. Mas, diz Satanás, se Deus lhe tocar nos seus bens, rectidão e temor desaparecerão num instante. Ora, Deus toca efectivamente nos seus bens. Todas as suas propriedades são roubadas e destruídas – e todos os seus filhos mortos. Acontece que Job reage à catástrofe bendizendo Deus e sem cometer blasfémia alguma, tudo aceitando. Vendo isto, Satanás – com alguma razão, diga-se de passagem – não desarma, e aconselha Deus, a benefício de uma prova conclusiva, a tocar Job directamente no corpo, nos ossos e na carne. E Deus envia a Job uma lepra maligna que lhe enche o corpo de pús. E aí o caso, sob certos aspectos, muda sensivelmente de figura.

E muda sobretudo de figura por causa da visita de três amigos – Elifaz, Baldad e Sofar – que, a princípio, nem sequer o reconhecem, tal a desfiguração provocada pela lepra. Seguem-se sete noites e sete dias de silêncio, até que Job, na presença dos amigos, amaldiçoa o dia do seu nascimento. E os amigos e Job começam a alternar discursos, a partir de um padrão que se repete: enquanto Job insiste em que o seu sofrimento não faz sentido (tendo sido ele sempre um homem recto e piedoso), os amigos, que se supõem um saber maior do que o de Job, procuram-lhe exactamente mostrar que o seu sofrimento faz sentido, isto é, que as suas causas são inteligíveis e compreensíveis. O sofrimento físico e moral extremo de Job é, por assim dizer, ampliado por essa afirmação de sentido para o seu sofrimento que lhe vem da boca dos amigos.

O sofrimento de Job não se podia expressar de forma mais veemente. As setas de Deus estão cravadas nele e a carne, coberta de podridão e imundície, sente-lhes o veneno. Os seus inimigos olham-no com olhos terríveis, abrem a boca para o devorar e batem-lhe no rosto para o ultrajar. Deus despedaça-lhe o corpo com feridas sobre feridas e atira-se a ele, objecto de escárnio, como um guerreiro. Os homens cospem-lhe no rosto e Job sente-se filho da podridão e dos vermes. Irmãos e amigos afastam-se. Os criados olham-no com ar estranho, e tem de suplicar para que o sirvam. A mulher sente repugnância do seu hálito. A pele cola-se aos seus ossos descarnados. Perseguido por Deus e invadido de terror, a sua alma dissolve-se. É preciso realmente ler o texto para nos darmos conta tanto da extrema solidão em que Job se encontra quanto da terrível indistinção entre a enorme dor física e o mal moral que lhe faz dissolver a alma. As imagens de que Job se serve (limitei-me a alguns exemplos) mostram-no da forma mais absoluta.

E o que lhe dizem os amigos? Que nenhuma coisa sucede no mundo sem motivo. Que o querem instruir. 

Que os lamentos de Job só revelam ignorância, uma ignorância que merece repreensão. Que Job não conhece os segredos da sabedoria de Deus, que não compreende os seus caminhos ou a sua omnipotência. 

Que o que Job diz apenas mostra a sua iniquidade e a sua cólera contra Deus. Que os seus discursos intermináveis são o resultado de falta de reflexão. Qual é o fundo daquilo que os amigos dizem, a partir do qual falam? A estupidez, a nua e crua estupidez humana. Aqui essencialmente representada pela incapacidade radical de imaginar a solidão alheia de uma outra forma que não seja a da altiva e diabólica vontade de não comunicar, a do orgulho do miserável.

Job, naturalmente, não agradece tanta sabedoria vinda em seu auxílio. “Na verdade vós sois homens hábeis e convosco morrerá a sabedoria”, nota ironicamente. Para ele, é escárnio invocar Deus em busca de resposta. É com Deus, e não com gente que não sabe mais do que ele e que pretende patrocinar a causa divina, que gostaria de falar. Job também se irrita com os longos discursos dos amigos, “consoladores importunos”: “Quando terão fim essas palavras de vento?”. Elas só podem vir, ponto importante, de alguém que não se encontra no seu lugar: “Eu também podia falar como vós, se estivésseis no meu lugar.” Tão vãs consolações não são mais do que perfídia.

Depois do discurso de um quinto personagem, Eliú, é o próprio Deus que intervém na querela. Certamente que para lembrar a Job a ignorância em que este se encontra da sua sabedoria, mas igualmente para censurar aos amigos de Job a soberba de pretenderem conhecer os desígnios divinos. De facto, a censura a Job é bem menos radical do que aquela que é dirigida aos seus amigos. Na sua derrelição, no seu desamparo radical, Job havia sido mais recto para com Deus do que os seus amigos. E Deus restituiu-lhe com vantagem tudo o que Job havia perdido.

Não tenho, é claro, quaisquer competências em matéria de teologia bíblica, apesar de ter procurado aplicadamente aprender uma coisa ou outra desde que (muito tarde, aos vinte e cinco anos) comecei a ler a Bíblia. Mas o Livro de Job (toda a Bíblia, de resto) fala por si. E não fiz caso dos vários estratos de composição do texto, que obviamente determinam o sentido da leitura. Mas estas deficiências, que já não vou a tempo de emendar, não me impedem de de ver no Livro de Job o grande livro sobre o sofrimento humano. Não que o sofrimento, ou o mal, sejam o mais desejável objecto de pensamento: o prazer, ou o bem, são-no de preferência – e de longe. Mas o sofrimento acompanha-nos pela vida inteira e o Livro de Job diz-nos, de facto, algo de essencial sobre ele.

Diz-nos, por exemplo, que há um valor do silêncio face ao sofrimento. Se os amigos de Job mantivessem o seu silêncio dos primeiros sete dias e das primeiras sete noites, e não pretendessem instruir Job, o sofrimento deste, por maior que fosse o seu estado de abandono, seria menor do que aquele em que se tornou. Os amigos, de resto, eram provavelmente bem-intencionados, mas sofriam daquela espécie de estupidez ontológica que nos atravessa face às grandes dores alheias, físicas ou morais (chamemos-lhes assim). O sofrimento, na sua dimensão mais profunda, é incomunicável, vem de um lugar onde não estamos – ou ainda não estamos -, e, por isso, insusceptível de discussão. Nessa medida, que é a grande medida, é Job quem tem razão: ele não faz, literalmente, sentido. Os amigos querem que ele faça sentido e caem infalivelmente na tagarelice, mais ou menos pedante e certamente obscena. É uma tentação natural, sem dúvida. Queremos falar, e, falando, buscar sentido. Mas, pura e simplesmente, em certas situações é uma tentação a evitar. Há pretensões de comunidade que são abusivas.

A irritação de Job é legítima contra a estupidez dos amigos. Isto eu percebo. Quanto a Deus, não sei nada, tirando conhecer algo do que sobre Deus foi pensado, e por isso sou, prudentemente e sem heroísmo, antes pelo contrário, ateu. Mas o que o Livro de Job diz já chega para muito no que respeita ao sofrimento. E à estupidez. O Livro de Job é também um grande escrito sobre a estupidez humana.

Paulo Tunhas, aqui