São imagens como a do menino da praia que nos
fazem querer mudar o mundo, mas o mundo não muda com as nossas lágrimas
ou com os likes no Facebook; apenas muda com as nossas obras.
Num dos seus livros, CS Lewis explica como é
indiferente odiarmos ou amarmos o que nos é distante.
Odiar Hitler,
Estaline e arrepiarmo-nos com as atrocidades que eles cometeram não nos
faz melhores pessoas. Não nos faz nada. Por outro lado, idolatrar alguém
que não conhecemos também não quer dizer que temos maior ou menor
capacidade para amar.
Odiarmos ou indignarmo-nos com algo distante é
apenas confortável, é uma espécie de festinha à nossa moral tão frágil e
à nossa sensibilidade, que vai minguando conforme crescemos.
Mas é
apenas uma festinha. As nossas vidas estão repletas de ódios vários.
Odiamos racistas, odiamos assassinos, odiamos pedófilos, odiamos homens
que batem nas mulheres, odiamos terroristas. Odiamos muita gente. Gente
que não conhecemos e que apenas nos horroriza. E é por os odiarmos que
nos sentimos muitas vezes melhores pessoas; quem mais odeia o mal melhor
é, dizemos nós à nossa frágil moral.
A fotografia do menino na praia arrepia. Os nossos filhos com aquela
idade dormem naquela posição. O meu, com dois anos, dorme assim. E
arrepia porque aquele menino é transportado para as nossas casas, porque
imaginamos que podia ser o nosso filho. Porque sentimos aquele menino
ao colo. E é nestas alturas que temos a necessidade de odiar. Odiar quem
tem culpa por ter provocado aquela tragédia ou por não a ter evitado. E
ficamos assim, indignados, e choramos. Não, ninguém sabe como resolver a
questão dos refugiados, como resolver o drama da migração, e ninguém
sabe o que fazer. E o mais fácil é sempre odiar.
É dar a dita festinha à
nossa consciência moral. E assim colocarmo-nos do lado dos bons, dos
que odeiam.
Mas não, nada disto serve, e é por isso que a nossa indignação não
tem fim: o espaço para amarmos está ocupado com a indignação. Quando o
Papa fala da nossa incapacidade para chorar os mortos, é disto que fala:
choramos imagens, mas pouco fazemos pelas pessoas. Choramos por elas e
pela nossa inércia. Em 2013, quando o Papa Francisco foi a Lampedusa,
explicou: “Muitos de nós – e neste número me incluo também eu – estamos
desorientados, já não estamos atentos ao mundo em que vivemos, não
cuidamos nem guardamos aquilo que Deus criou para todos, e já não somos
capazes sequer de nos guardar uns com os outros. E, quando esta
desorientação atinge as dimensões do mundo, chega --se a tragédias como
aquela a que assistimos.” Então, o que fazer para além de chorar?
A tragédia dos milhares que fogem da morte e nos pedem acolhimento
põe-nos à prova. Põe à prova o nosso medo, as nossas inseguranças, o
nosso conforto. Estaremos nós disponíveis para nos aproximarmos
verdadeiramente daqueles por quem choramos, como pede o Papa? Para lhes
dar a mão, partilhar o nosso pão, as nossas casas, o nosso bem-estar?
Será que o nosso choro é mesmo verdadeiro? São imagens como a do menino
da praia que, quando aparecem, nos fazem querer mudar o mundo, mas o
mundo não muda com as nossas lágrimas ou com os likes no Facebook;
apenas muda com as nossas obras. E é nesta encruzilhada que vivemos: ou
nos defendemos e nos fechamos dentro do nosso pequenino mundo à espera
que ele mingue e finalmente desapareça, ou temos a capacidade e a
coragem de dar um passo rumo ao desconhecido, confiando apenas naquilo
que é o correcto: acolher, ajudar, partilhar e amar. A coragem de pensar
no outro - no que sofre, e não em nós –, e não perder tempo com ódios
abstractos que apenas anestesiam.
A imagem do menino pode ter servido para isso, para querermos começar
a escrever a História de outra maneira, através de obras de
solidariedade, e pararmos de chorar para nada. Só assim poderemos dar
algum sentido à sua morte, assim como à de milhares de outros pais, mães
e filhos.
Inês Teotónio Pereira, aqui