É tão fácil descobrir qual é o problema
essencial
hoje dos portugueses, para os unir:
é pão na mesa e trabalho,
esta coisa simples.
Adriano Moreira
Finda a etapa velocipédica a que
assistira pela televisão, Job percorreu a pé uma escassa centena de metros e
dirigiu-se para o jardim de cimento polido construído ao lado do velhinho, mas
agora rejuvenescido, depósito da água da cidade.
Ajeitou o boné, que em sinal de
respeito retirara da cabeça ao passar pelo portão do cemitério, e sentou-se no
banco cujo encosto de ferro fundido o sol aquecia desde manhã cedo.
A época era de férias e o tempo convidava ao passeio. Rapidamente, por ali apareceu um fulano moreno, atarracado, de aspecto grosseiro e com uma justa camisola de alças que permitia ver-lhe o musculado tronco, que se sentou ao seu lado e atirou de chofre:
– Sou da idade do Joaquim Gomes…
Já lá vão 20 anos desde que ganhou a volta. – concluiu, com ar de quem sabia da poda.
– Isso é que é memória!
– Lembro-me como se fosse hoje…
A malta lá na cerâmica até delirou… Éramos os patrocinadores oficiais. – rematou o vaidoso.
O desbloqueador de conversa tinha cumprido a sua função e, num ápice, o trombudo já dava palpites sobre tudo e mais alguma coisa, desde a cor das placas de cimento que revestem o piso do jardim à ausência de sombras e até à pista ciclável…
– É uma pena! Tanto dinheiro
gasto e, na prática, as pessoas nenhum proveito tiram disto. – afirmou convicto
da sua razão.
Tanta tagarelice fazia até lembrar o chilrear da pardalada, ao final da tarde, na avenida Dr. Abílio Pereira Pinto.
A pardalada e não só, porque o discurso preferido agora é sobre aves… Todo o tipo de aves… Umas mais e outras menos raras, sejam melros com bicos das cores Benetton, das rolhas de garrafa de espumante propagandeadas pela Rota da Bairrada, sejam falcões, aves de arribação e até mesmo cucos.
Até já houve quem, a despropósito e sem que se saiba porquê, também tivesse falado de ovos e de cestas para justificar as omeletas que tem feito.
E como as conversas são como as cerejas, encadeiam-se umas nas outras de tal forma que é difícil parar. Quando se fala de pássaros, também se fala de passarinhos e de passarões e, enquanto o diabo esfregou um olho, lá vieram à baila os galos e os poleiros…
Palavra puxa palavra e sem se saber como nem porquê, a conversa rapidamente evoluiu para a questão de um nó de acesso à auto-estrada na área do concelho.
– Sinceramente, não percebo… Com
uma entrada para a auto-estrada a meia dúzia de quilómetros, como é que neste
tempo de vacas magras ainda há quem tanto insista em ter outra na sede do
concelho? – resmungou o carrancudo, enquanto balançava as pernas e coçava o
peludo peito.
– Sabe, amigo, por vezes há
coisas que não parecem o que são… Já pensou que interesses e que interessados é
que esse nó está destinado a servir? – atirou Job. – É que já nem sequer há
pudor… Ainda se se batessem por um nó de acesso que servisse as zonas industriais
da Palhaça ou de Bustos…
– Pois… Acho que tem razão… Mas
olhe que não é só isso… –
atalhou a embezerrada personagem.
– Refere-se a quê?
– Olhe, a coisas como o
incumprimento dos afastamentos de certas unidades industriais ou de alterações
de cursos de rios, de valas foreiras e hidráulicas…
– Ah! Pensava que se referia à
instalação de depósitos de resíduos de inertes ou à prospecção e exploração de
depósitos minerais de caulino na área geográfica do concelho…
– Nem me fale disso, que fico já
com um nó no estômago… – atirou
o mal-encarado, enquanto rodava o palito que mantinha enfiado na acastanhada
dentuça.
– Ah! Pois é… Isto, só de pensar
nos interesses e nos interessados que estas situações claramente servem…
Sem grande esforço, esta já não
era propriamente uma conversa sobre galos; era mais sobre poleiros… Mas
poleiros de galinheiro e, obviamente, sobre toda a imundície que os envolve.
– Enfim, nem vale a pena falar
disso… – rematou Job.
Lá longe, o sol já caía sobre a cidade.
Aproximava-se uma noite
anunciada como de incontida folia.
Job sabia que a Praça do Município estaria a abarrotar de gente, uma menos anónima que outra. Mas também sabia que, no dia seguinte, seriam poucos os foliões que por esse país fora se lembrariam da cidade e dos seus encantos.
Porque o que a estes interessa é que haja festas e alguém disponível para as fazer e pagar. Nem que sejam para comemorar efemérides com uma dezena de dias de antecedência, em plena campanha eleitoral. Tudo o resto são devaneios...