Algumas, um punhal, um incêndio.
Outras, orvalho apenas.
Eugénio de Andrade
Job é assim mesmo. Gosta de
saber coisas e de conversar. Gosta mesmo muito de conversar.
Nessa tarde, foi visitar a tia,
por quem tinha sido criado e nutria grande carinho e afeição.
Apesar de residir
em Lisboa há cerca de oito anos, Assunção acompanha com particular interesse o
desempenho autárquico do concelho onde nasceu, cresceu e se fez mulher, e no
qual continua recenseada como eleitora.
– Então, desta vez, como é que
vai ser?
– Olhe, tia… Nem sei que lhe
diga… – disse Job, ao mesmo
tempo que o silvo da chaleira se fez ouvir.
– Nem eu sei que pensar… Mas
tenho a certeza de que isto melhorava muito se aparecesse alguém que se
dedicasse exclusivamente ao concelho…
– Mas…
Job não pôde prosseguir, porque
a tia Assunção logo atalhou, depois de soprar para arrefecer o chá açoriano que
invariavelmente preparara e servia sempre que Job a visitava.
– Sim, alguém que não seja
presidente de câmara durante o dia e empresário à noitinha… Ou que seja
presidente de câmara às Segundas, Quartas e Sextas e empresário às Terças e Quintas…
– Há mesmo os que, como
empresários, chegam a receber comitivas estrangeiras para, logo a seguir, as
receberem como presidentes da câmara… E, pelo meio, ainda aproveitam para
abastecer as viaturas próprias com combustível da empresa…
– E depois não querem que se
fale de interesses e de promiscuidades!
– Tem toda a razão, tia… A causa
pública é um assunto demasiado sério para ser encarado como alguns o fazem, sem
se respeitarem a si próprios. E, pior que isso, desrespeitando os munícipes e
as instituições democráticas e as colectividades dos concelhos…
– Sabes, há por aí uns bonecos
de cera que pensam que estão na Terra do Nunca e que se fazem passar pelo Peter
Pan… Vivem de sonhos e de aventuras, rodeados de meninos perdidos e sempre acompanhados
por uma graciosa fada...
– E que olham para os outros
como inimigos terríveis, dando a ideia de que são todos como o covarde e
ardiloso Capitão Gancho. Nunca tinha pensado nisso, mas vendo bem as coisas… – reconheceu Job. – E quanto a candidatos, o que é que acha?
– Apareceram uns a dizer que as
pessoas estão primeiro. Logo de seguida, surgiram outros a reivindicar que
sempre estiveram com as pessoas e agora, por fim, já há os que dizem que vão
apoiar as pessoas...
– Pois, é verdade. – anuiu Job. – Agora lembram-se de falar nas pessoas… Transfiguram-se e surgem com o
rosto resplandecente como o sol e com umas vestes brancas como a luz...
– É, de facto, muito estranho… Nestas
alturas, mostram o que não são para cair nas boas graças de quem lhes pode
garantir o poder…
– É verdade… Requalificam
avenidas, mas esquecem-se das praças e jardins que cativam as pessoas à sua
fruição. Fazem super-escolas e nem se lembram de que há cada vez menos pessoas
para as ocupar. Renovam parques de lazer sem árvores de ensombramento. Acabam
com o reconhecimento dos cidadãos que se distinguem como exemplos de cidadania
e de dedicação a causas de interesse municipal e ainda têm a suprema lata de
dizer que sempre estiveram com as pessoas…
– Sobre essa questão, só tenho
uma forma de pensar. Por muito que digam, por muito convincentes que procurem
ser os candidatos, há três características que, para mim, diferenciam os bons
candidatos dos outros… Entre estas características não se inclui, obviamente, a
capacidade de cada um, porque este é um predicado tão básico e elementar que
nem quero crer que haja quem se abalance a uma eleição sem ter capacidade para
o desempenho do cargo a que se candidata. Tenho, para mim, três traços de
personalidade que, conjugando-se num candidato, fazem seguramente deste o
candidato ideal.
– E quais são essas
características? – quis saber
Job.
– O primeiro desses traços é o
da humildade, o segundo é da proximidade e, o último, o do diálogo – asseverou.
– Tem toda a razão, tia! –
concordou Job. – Porque muito mais importante do que falarem
agora das pessoas, aparecendo como arautos do diálogo, era que tivessem
mostrado esta disponibilidade quando as pessoas os procuraram para resolver os
seus problemas… E, nessa altura, o que se sabe é que as portas estiveram
fechadas e o diálogo não existiu. Portanto, quanto a isso, é certo e sabido que
há candidatos que, em matéria de proximidade com as pessoas, já não convencem
quem quer que seja.
– Sim, é verdade. Há muitos
anos, alguém que nos governou com mão de ferro durante uma longa noite de meio
século disse que “em política o que parece, é”. E não é que até acho que ele
tinha razão? – sentenciou a sapiente Assunção, antes de perguntar a Job se
tinha gostado dos biscoitos que, ainda fumegantes, servira para acompanhar o
chá.
– Sabe, tia… Há meses que
sonhava com estes bolinhos de manteiga… A raspa de limão dá-lhes um toque
absolutamente divinal!
– Receita da tua avó, que era
uma excelente cozinheira e uma magnífica doceira. – disse Assunção, com a voz
quase trémula, enquanto fixou um olhar de saudade na fotografia da mãe que se
encontrava pousada num já gasto napperon
de renda, sobre o velho aparador da antiga sala.