Não há nada de mais ilusório e contingente do que a verdade,
e coisa alguma mais ajuizada do que a dúvida.
Carlos Malheiro Dias
A praxe académica, agora trazida
à luz da ribalta com uma exploração mediática diária que roça o que de mais
macabro possa imaginar-se, não pode deixar de ser analisada dentro de um quadro
metodológico, social e histórico surgido em Coimbra, onde desde sempre foi
entendida como fenómeno complexo e multiforme que envolve ritos
lúdico-festivos, associa práticas e objectos e consagra uma gíria e discurso
próprio de uma universidade onde, noutros tempos, a regra até exigia que na Via
Latina se falasse em Latim e onde, ainda hoje, continuam a ocorrer
manifestações próprias, como a abertura solene dos anos lectivos, a defesa de
teses, a imposição de insígnias, os doutoramentos e os funerais.
Na “tomada da Bastilha” e na
festa das latas, que era simultaneamente de imposição de insígnias e também
conhecida por festa de recepção aos recém-chegados caloiros, estes eram
assustadora mas inofensivamente avisados pelos veteranos e logo recebiam uma
verdadeira aula de introdução à praxe, em que, pela primeira vez, ouviam termos
estranhos como “semi-putos”, “putos”, “grelados”, “fitados” ou “veteranos”, “futricas”,
“trupes” e “doutores”, para logo de seguida aceitarem a “protecção” de um
colega mais velho que, daí em diante, assumia o espinhoso cargo de padrinho.
Com este espírito de verdadeiro
acolhimento e integração dos novos alunos da academia, lá se chegava ao final
da Primavera, altura a partir da qual essa integração passava a envolver
serenatas e outras cantigas, algumas mesmo do bandido que, por vezes, até
levavam a que se saltasse de varandas em trajos mais do que menores e que em
maré de sorte até davam direito a cestinhos de verga a descer das janelas dos
lares de freiras e não só, presos pelas cordas que durante o dia serviam para
secar a roupa, abarrotados com garrafas de bom vinho e fatias dos bolos que as
donzelas traziam para Coimbra depois dos fins-de-semana de descanso que
passavam com as mamãs e os papás. Alguns, com mais sorte, recebiam mesmo um
bilhetinho com a indicação de uma hora e local para encontro, que isso de
telemóveis e Facebook nunca ninguém
tinha sequer ouvido dizer que existia!
Quanto à Queima das Fitas,
considerado o ponto alto da praxe académica, consagrava uma infindável lista de
eventos, encabeçados pelas noites dedicadas a cada uma das faculdades e que se
iniciavam com uma serenata monumental (até sempre, Tó Nogueira!), seguida de
uma ceia dos boémios onde a ordem era para comer e beber à fartazana
(lembram-se, António Bettencourt e Carlos Costa?), de um sarau cultural (que
memoráveis actuações da Orquestra Típica e Rancho onde pontuavam a Paula
Andrade e o Xico Pintanas e da Orxestra Pitagórica onde sobressaía o José Seco,
o Nini e o Quim Reis!) que se prolongava pela madrugada entre os gansos que se
passeavam pelos lagos do jardim da avenida e a Praça da República, de um baile
de gala (que honra tive na abertura de 14 de Maio de 1983!) de onde se saía ao
alvorecer com a maioria a cair de sono e uns tantos já com um grão na asa, até
se embarcar de comboio em direcção à Figueira da Foz (alô, Joaquim Troça!) para
marcar presença na garraiada (Chico Polícia, foste o maior!) que aí se
realizava na praça de touros, de um cortejo universitário (em 1983, o carro dos
JURIS imprudentes até teve uma deusa a empunhar a espada de um dos archeiros de
serviço na Porta Férrea!) onde professores e alunos se colocam segundo a
hierarquia das faculdades e de um chá dançante (com o Pedro Nobre sempre a
somar!): uma apoteótica sucessão de eventos em que, não raramente, nasciam
amores tão intensos quanto efémeros.
Esta, pois, a praxe que vivi,
uma praxe benévola, inofensiva e até mesmo piegas e quase romântica e que
continuo a reconhecer como verdadeira emanação do espírito académico com vista
à integração dos novos alunos no ambiente universitário.
Com a proliferação de
universidades e politécnicos, o modelo coimbrão acabou por ser implantado
noutras paragens, sofrendo natural adaptação aos traços de cada local, e assim
conduzindo à criação de projectos identitários de cada campo universitário. Só
que, de mão dada com esta adaptação, andou a transformação social e política da
sociedade portuguesa, conduzindo à transmutação da praxe em incompreensíveis
cambiantes de selvajaria e repugnância, a até mesmo de sadismo e tirania
associadas a incomensuráveis doses de estupidez e ordinarice.
E se há trinta anos os caloiros
podiam ser submetidos a provas de oratória, pelas quais tanto lhes era exigida
argumentação para a defesa do bicho do caruncho, num processo virtual onde este
lenhívoro estava acusado de assédio por comer umas secretárias, como
declarações de amor eterno à(o)s agentes da autoridade que se encontrassem no
local, ou até mesmo que medissem com paus de fósforos o diâmetro da Praça da República
ou subissem e descessem de costas voltadas os cinco vãos de vinte e cinco
degraus cada das escadas monumentais, o que hoje se vê é a passagem pelos
campos universitários e não só, de filas indianas de caloiros presos por
cordas, com caras pintadas e orelhas de burro, conduzidos por uns paspalhões
com ar de pastores que, de colher de pau em riste, vão ditando posturas de
humilhação e submissão que vão desde as inenarráveis flexões às simulações
sexuais, invariavelmente acompanhadas por um palavreado indecoroso, sem
qualquer lógica ou sentido de integração na vida académica do ensino superior.
Onde antes havia liberdade e
unanimidade espontânea entre praxante e praxado no âmbito de uma praxe flexível
e amistosa, hoje há libertinagem e imposição de unanimismo dos praxantes quanto
a humilhações pesadas e deprimentes, invariavelmente praticadas em violação ao
código da praxe que determina que esta, no sentido de acção de praxar, seja
efectuada entre pessoas do mesmo sexo.
Nada que espante, afinal, numa
sociedade que parece ter perdido, em definitivo, as suas referências e valores
morais, onde a cortesia deu lugar à má educação, onde se cultiva o insulto em
detrimento do (agora anacrónico) cavalheirismo, onde o linguajar parece ter
substituído de vez a linguagem comunicacional e onde a boçalidade parece ter-se
tornado cultura dominante, tão dominante que até tem exposição pública
garantida até à exaustão por canais de televisão que têm nestas misérias da
natureza humana a garantia das suas elevadas audiências.
E tudo isto, claro, perante a
indiferença de governos que em detrimento do mérito são compostos em função da
militância partidária e que, assobiando para o lado e fazendo de conta que não
é nada consigo, apenas reconhecem como tal os problemas que têm eco na
comunicação social.
E, quando assim é, não há Meco
que resista.