sábado, 29 de agosto de 2015

ASSIM NÃO HÁ MECO QUE RESISTA



Não há nada de mais ilusório e contingente do que a verdade,
e coisa alguma mais ajuizada do que a dúvida.

Carlos Malheiro Dias

A praxe académica, agora trazida à luz da ribalta com uma exploração mediática diária que roça o que de mais macabro possa imaginar-se, não pode deixar de ser analisada dentro de um quadro metodológico, social e histórico surgido em Coimbra, onde desde sempre foi entendida como fenómeno complexo e multiforme que envolve ritos lúdico-festivos, associa práticas e objectos e consagra uma gíria e discurso próprio de uma universidade onde, noutros tempos, a regra até exigia que na Via Latina se falasse em Latim e onde, ainda hoje, continuam a ocorrer manifestações próprias, como a abertura solene dos anos lectivos, a defesa de teses, a imposição de insígnias, os doutoramentos e os funerais.

A única praxe académica que conheci, e vivi com fervor, foi retomada em Coimbra, em 1980, depois do luto académico de 1969, que assegurava em cada ano a “tomada da Bastilha”, a “latada” e a “queima das fitas” como acontecimentos sazonais que não só regulavam o calendário universitário mas também o da própria cidade e que nada têm a ver com o que por aí vai grassando.

Na “tomada da Bastilha” e na festa das latas, que era simultaneamente de imposição de insígnias e também conhecida por festa de recepção aos recém-chegados caloiros, estes eram assustadora mas inofensivamente avisados pelos veteranos e logo recebiam uma verdadeira aula de introdução à praxe, em que, pela primeira vez, ouviam termos estranhos como “semi-putos”, “putos”, “grelados”, “fitados” ou “veteranos”, “futricas”, “trupes” e “doutores”, para logo de seguida aceitarem a “protecção” de um colega mais velho que, daí em diante, assumia o espinhoso cargo de padrinho.

Com este espírito de verdadeiro acolhimento e integração dos novos alunos da academia, lá se chegava ao final da Primavera, altura a partir da qual essa integração passava a envolver serenatas e outras cantigas, algumas mesmo do bandido que, por vezes, até levavam a que se saltasse de varandas em trajos mais do que menores e que em maré de sorte até davam direito a cestinhos de verga a descer das janelas dos lares de freiras e não só, presos pelas cordas que durante o dia serviam para secar a roupa, abarrotados com garrafas de bom vinho e fatias dos bolos que as donzelas traziam para Coimbra depois dos fins-de-semana de descanso que passavam com as mamãs e os papás. Alguns, com mais sorte, recebiam mesmo um bilhetinho com a indicação de uma hora e local para encontro, que isso de telemóveis e Facebook nunca ninguém tinha sequer ouvido dizer que existia!

Quanto à Queima das Fitas, considerado o ponto alto da praxe académica, consagrava uma infindável lista de eventos, encabeçados pelas noites dedicadas a cada uma das faculdades e que se iniciavam com uma serenata monumental (até sempre, Tó Nogueira!), seguida de uma ceia dos boémios onde a ordem era para comer e beber à fartazana (lembram-se, António Bettencourt e Carlos Costa?), de um sarau cultural (que memoráveis actuações da Orquestra Típica e Rancho onde pontuavam a Paula Andrade e o Xico Pintanas e da Orxestra Pitagórica onde sobressaía o José Seco, o Nini e o Quim Reis!) que se prolongava pela madrugada entre os gansos que se passeavam pelos lagos do jardim da avenida e a Praça da República, de um baile de gala (que honra tive na abertura de 14 de Maio de 1983!) de onde se saía ao alvorecer com a maioria a cair de sono e uns tantos já com um grão na asa, até se embarcar de comboio em direcção à Figueira da Foz (alô, Joaquim Troça!) para marcar presença na garraiada (Chico Polícia, foste o maior!) que aí se realizava na praça de touros, de um cortejo universitário (em 1983, o carro dos JURIS imprudentes até teve uma deusa a empunhar a espada de um dos archeiros de serviço na Porta Férrea!) onde professores e alunos se colocam segundo a hierarquia das faculdades e de um chá dançante (com o Pedro Nobre sempre a somar!): uma apoteótica sucessão de eventos em que, não raramente, nasciam amores tão intensos quanto efémeros.

Esta, pois, a praxe que vivi, uma praxe benévola, inofensiva e até mesmo piegas e quase romântica e que continuo a reconhecer como verdadeira emanação do espírito académico com vista à integração dos novos alunos no ambiente universitário.

Com a proliferação de universidades e politécnicos, o modelo coimbrão acabou por ser implantado noutras paragens, sofrendo natural adaptação aos traços de cada local, e assim conduzindo à criação de projectos identitários de cada campo universitário. Só que, de mão dada com esta adaptação, andou a transformação social e política da sociedade portuguesa, conduzindo à transmutação da praxe em incompreensíveis cambiantes de selvajaria e repugnância, a até mesmo de sadismo e tirania associadas a incomensuráveis doses de estupidez e ordinarice.

E se há trinta anos os caloiros podiam ser submetidos a provas de oratória, pelas quais tanto lhes era exigida argumentação para a defesa do bicho do caruncho, num processo virtual onde este lenhívoro estava acusado de assédio por comer umas secretárias, como declarações de amor eterno à(o)s agentes da autoridade que se encontrassem no local, ou até mesmo que medissem com paus de fósforos o diâmetro da Praça da República ou subissem e descessem de costas voltadas os cinco vãos de vinte e cinco degraus cada das escadas monumentais, o que hoje se vê é a passagem pelos campos universitários e não só, de filas indianas de caloiros presos por cordas, com caras pintadas e orelhas de burro, conduzidos por uns paspalhões com ar de pastores que, de colher de pau em riste, vão ditando posturas de humilhação e submissão que vão desde as inenarráveis flexões às simulações sexuais, invariavelmente acompanhadas por um palavreado indecoroso, sem qualquer lógica ou sentido de integração na vida académica do ensino superior.

Onde antes havia liberdade e unanimidade espontânea entre praxante e praxado no âmbito de uma praxe flexível e amistosa, hoje há libertinagem e imposição de unanimismo dos praxantes quanto a humilhações pesadas e deprimentes, invariavelmente praticadas em violação ao código da praxe que determina que esta, no sentido de acção de praxar, seja efectuada entre pessoas do mesmo sexo.

Nada que espante, afinal, numa sociedade que parece ter perdido, em definitivo, as suas referências e valores morais, onde a cortesia deu lugar à má educação, onde se cultiva o insulto em detrimento do (agora anacrónico) cavalheirismo, onde o linguajar parece ter substituído de vez a linguagem comunicacional e onde a boçalidade parece ter-se tornado cultura dominante, tão dominante que até tem exposição pública garantida até à exaustão por canais de televisão que têm nestas misérias da natureza humana a garantia das suas elevadas audiências.

E tudo isto, claro, perante a indiferença de governos que em detrimento do mérito são compostos em função da militância partidária e que, assobiando para o lado e fazendo de conta que não é nada consigo, apenas reconhecem como tal os problemas que têm eco na comunicação social.

E, quando assim é, não há Meco que resista.