domingo, 23 de agosto de 2015

AQUELE SEGUNDO EM QUE A VIDA PASSA A SER OUTRA COISA

Uma vez estive no meio de um acidente gravíssimo e uma das pessoas envolvidas morreu

De que é que me lembro? De olhar pelo retrovisor e ver uma carrinha branca a bater num carro que ia ultrapassar--me, os dois a voar, um deles a empurrar um outro que seguia à minha frente e depois a desaparecer, sem tocar nas árvores que acompanham a estrada. 

Parei sem ter sido atingida e sem bater em ninguém, intacta e perplexa. De telefone na mão, corri à procura dos carros caídos nas bermas, um para cada lado. Uma voz segura atendeu o 112 e fez-me perguntas: onde estava, quantos carros, quantas pessoas, era preciso desencarcerar alguém?

Desencarcerar, que palavra brutal. A voz tranquilizou-me com essa exigência de ser factual, sem adjetivos, como se escrevesse uma notícia. Disse-me: não deixe ninguém mexer nos feridos nem mudar a posição dos carros, enquanto eu via uma dezena de homens a virar à força de braços a carrinha branca caída de lado onde se agitavam várias pessoas. Sei todos estes pormenores porque a memória mos traz, nítidos, e porque tive de repeti-los dias depois aos homens das seguradoras. Meses mais tarde fui chamada à polícia, testemunha a desempatar versões divergentes.

Massacrei família e amigos e toda a gente com esta história, nos dias seguintes. Era o meu acontecimento, o meu caso especial. Foi estranho voltar a conduzir, como se tomasse consciência de cada travagem, cada mudança, cada espreitadela aos retrovisores, como se tivesse consciência dos múltiplos perigos que existem, realmente existem, e do fator surpresa dos erros dos outros, não apenas os nossos. A minha memória não me traz sons, é um filme mudo e em câmara lenta, como os pesadelos que me perturbaram naquelas noites. Quanto mais escrevo mais pormenores me reaparecem (sosseguem, não quero maçar ninguém com sangue, confusão, ambulâncias). Mas a razão de ter ido buscar este episódio foram as imagens dos acidentes que nos últimos dias encheram jornais e televisões. 

A ideia de três jovens atropelados num banal passeio de bicicleta. De outros três que morreram no Algarve, à saída de uma noite de copos, um carro cor--de-rosa desfeito. E dos desastres que presenciei, relatei, li. Nada que caiba nas estatísticas de menos mortos ou mais acidentes, feridos graves de que não voltamos a ter notícia, comparações que nos fazem pensar mas que são inúteis para quem lá estava, para quem perdeu pessoas queridas, chorou de aflição ou sossegou com boletins clínicos. Não tenho nesta história uma conclusão esclarecedora. Nada. É só isto. Uma pessoa vai na estrada, com visibilidade total, pouco movimento, nenhum carro no sentido contrário, e atrás há dois condutores que resolvem fazer uma ultrapassagem quase em simultâneo, um deles desatento ao outro que tinha começado primeiro a manobra. Num segundo a vida passa a ser outra coisa.

Ana Sousa Dias, aqui