sábado, 22 de agosto de 2015

QUE ESTRANHA FORMA DE VIDA...


Que estranha forma de vida
 tem este meu coração:
 vive de forma perdida;
 Quem lhe daria o condão?
 Que estranha forma de vida.

Amália Rodrigues

Job sabe que há milhares, ou até mesmo milhões de portugueses que, por estes dias, acharam absolutamente normal que o desaparecimento físico de um jogador de futebol tenha justificado que a figura máxima da República decretasse três dias de luto nacional: mas ele acha que isso é estranho…

Job sabe que há milhares, ou até mesmo milhões de portugueses que, por estes dias, acharam absolutamente normal que o funeral de um jogador de futebol fosse transmitido, em simultâneo, por 11 (onze!!!!) canais de televisão: mas a Job isto causou estranheza…

Job sabe que há milhares, ou até mesmo milhões de portugueses, que, por estes dias, acharam absolutamente normal que o Fernando Tordo tenha dito que “este funeral é uma grande festa do Benfica”: mas Job acha que isso é estranho…

Job sabe que há milhares, ou até mesmo milhões de portugueses que, por estes dias, deram por assente que tinha falecido um representante divino na Terra. Tendo sido despejado em Portugal continental, em finais de 1975, Job apenas viu Eusébio da Silva Ferreira jogar uma única vez: em 5 de Janeiro de 1977, exactamente 37 anos antes do dia do seu falecimento, em Aveiro, no agora desprezado Estádio Mário Duarte, a envergar a camisola do Beira-Mar num jogo contra o seu clube de sempre. E se Job diz que nesse jogo Eusébio da Silva Ferreira se limitou a envergar a camisola, é porque foi o próprio atleta a confessar numa entrevista que recentemente concedeu à televisão pública que nesse jogo não fez tudo o que estava ao seu alcance, tendo inclusivamente informado o treinador dos aveirenses que não ia rematar à baliza e que antes do jogo até tinha ido ao balneário do seu amado clube dizer que não se preocupassem, pois não ia marcar golos, o que efectivamente aconteceu, uma vez que não rematou, não marcou faltas nem grandes penalidades. Andava lá no campo só a passar a bola aos outros: e isto também causou estranheza a Job…

Job sabe que há milhares, ou até mesmo milhões de outros portugueses que, por estes dias, reconheceram como ele reconhece que Eusébio da Silva Ferreira foi um génio do futebol, num tempo em que as vitórias eram premiadas com garrafas de whisky e a ligação dos jogadores aos clubes que representavam era de verdadeiro amor à camisola e que seria, pois, sempre da mais absoluta justiça que, na hora do seu desaparecimento, fosse homenageado pelo clube que sempre defendeu, mesmo depois do abandono a que o votou, e que nesta homenagem se envolvessem os associados e simpatizantes desse clube e até mesmo de todos os amantes do futebol que o reconhecem como o melhor futebolista de uma geração. E, por isso, Job achou estranho o espectáculo demente e estupidamente alimentado por uma comunicação social que, sem qualquer pejo, enveredou por uma prestação tão populista quanto demagógica e deprimente de mistificação de uma personalidade a um nível absolutamente exacerbado e, por isso mesmo, repreensível, onde tudo valeu, desde tirar fotografias à urna aberta com a família ao lado, às entrevistas às criancinhas que, mesmo não tendo nunca visto Eusébio da Silva Ferreira jogar, não se cansaram de aludir a um sentimento de grande perda apenas e só porque já tinham ouvido estórias contadas pelos bisavós sobre este mago da bola. Isto para já não falar das aves raras da política que, quais abutres, abocanharam a ocasião para se alcandorarem a oportunísticos níveis mediáticos tão imprevistos quanto inimaginados, promovendo para todo o mundo o exemplo de uma personalidade tão genial quanto humilde, com um simplicidade ímpar e um sorriso de menino.

Uma histeria colectiva que culminou com a cobertura de uma inumação onde o respeito pelo féretro, pelo recato e pela intimidade do momento foram ignorados e mandados às malvas, a troco do melhor ângulo para captação das lágrimas dos familiares, enquanto uma caterva de atrofiados se encarregava de acrescentar à cerimónia as indecorosas e deploráveis atitudes de pisar campas e estragar sepulturas, desrespeitando os mortos sepultados nas imediações. E tudo, obviamente, transmitido em directo por mais de uma dezena de canais de televisão! E tudo isso Job achou verdadeiramente estranho…

E, já agora, a questão do Panteão. Job sabe que é mais que óbvio que os restos mortais de Eusébio da Silva Ferreira só não se encontram já lá depositados, porque há uma lei que consagra que tais honras não poderão ser concedidas antes do decurso do prazo de um ano sobre a morte dos cidadãos distinguidos. Uma lei cuja redacção actual é um verdadeiro facto à medida de um critério que, não sendo expresso, está mais do que consagrado: o oportunismo e o mediatismo do momento! Só por isso Job compreende o afã de uma classe política que tem tanto de inzoneira como de hipócrita, ao ponto de o cadáver ainda se encontrar a ser velado e já haver deputados e líderes parlamentares, presidente da assembleia incluída, a bater-se pela autoria da trasladação, visando o imediato cumprimento dessa mera formalidade que é a aprovação da iniciativa, já antecipadamente dada por assente, e a concretizar numa cerimónia onde a comoção das massas está, desde já, garantida. E Job acha que isto é estranho!

Aquilo que mais pareceu uma homenagem à alegria de um povo, mesmo de um povo tão triste e acabrunhado, para Job só tem explicação nas idiossincrasias da natureza humana em geral e da portuguesa, em particular, cuja devoção é irracional e desmesurada face à importância que o protagonismo mediático de uma personalidade deve ter numa sociedade europeia contemporânea. Afinal, quatro dezenas de anos depois de uma longa noite de meio século, a estupidificação colectiva ainda continua pujante, ao ponto de meter no mesmo saco os que perderam a vida em prol do bem-comum ou dignificaram e elevaram a condição humana e os que ganharam a vida a cantar, os que se ergueram contra a injustiça dos homens e os que ganharam a vida a marcar golos de antes de meio campo, de costas para a baliza, sem deixar a bola cair no chão ou até, quem sabe, mesmo os que, não sendo reis, venham a partir com a coroa de glória do recorde mundial de títulos desportivos obtidos no exercício dos respectivos mandatos de dirigentes clubísticos nacionais: ao que parece, todos estes merecem, afinal, a honra de serem reconhecidos como verdadeiras referências morais e cívicas para Portugal e para o mundo.

Isto Job também acha que é estranho, embora não estranhe que tal atitude esteja coberta pelo límpido manto de quem, enquanto eleito e pago pelo povo, nada haja feito pela realização de referendos sobre questões de verdadeiro interesse nacional como a aprovação do tratado sobre o funcionamento da União Europeia ou do acordo ortográfico.

Da varanda, Job, o pescador, olhou para o extenso pano de águas que as últimas cheias trouxeram até às imediações da porta da sua casa. Aconchegou no canto da boca o cigarro que acabara de enrolar e acender e, enquanto libertou uma densa baforada de fumo meditou, de olhos semicerrados, naquele pensamento de Abraham Lincoln segundo o qual pode-se enganar a todos por algum tempo. Pode-se enganar alguns por todo o tempo, mas não se pode enganar a todos todo o tempo. Que estranha forma de vida…