quarta-feira, 19 de agosto de 2015

A CARTA

As inúmeras infelicidades que desabaram sobre o PS - e que incluem paradoxalmente o "tempo de confiança" de que se reclama a coligação - fizeram com que tivesse passado despercebida uma carta que Passos Coelho e Paulo Portas endereçaram aos portugueses.

A epistolografia tem alguma tradição entre nós. Andrée Rocha escreveu, aliás, uma interessante monografia sobre o tema. O carteio entre escritores ou entre políticos é indispensável para as respectivas biografias. A carta dos dois principais responsáveis pela coligação pertence, porém, a outra categoria: a da efemeridade de um mau panfleto político. Escrita com os pés, a epístola é um péssimo documento "literário" e um inútil exercício político.


Comecemos pelo primeiro ponto. Lê-se que "Portugal está a viver um momento de reflexão que resultará numa atitude e numa decisão de pessoas que vão avaliar o presente, pensar o futuro e que não deixarão de relembrar o passado". Os autores partem do pressuposto errado que, entre praias, pradarias, regresso da bola e festivais gastronómicos, ocorrem graciosos "momentos de reflexão".

Não ocorrem, pela natureza dos envolvidos e pelas circunstâncias. As "pessoas" a que aludem redundantemente (não se estava à espera que fossem os respectivos animais domésticos ou objectos inanimados de cozinha a perpetrar "decisões") têm mais que fazer como as sondagens persistentemente anotam. "Chegámos até aqui e vamos fazer muito mais", juram os nossos homens numa magnífica elipse relativamente ao que significa "chegada", e o "aqui" da "chegada", bem como a promessa de "fazer muito mais". Do mesmo? Diferente? Não se sabe. Todavia, "hoje, estamos a entrar num novo tempo".

É sempre assim desde que o mundo é mundo e a política é política: não paramos de "entrar num novo tempo". O último a usar isto, em 2002, foi o dr. Barroso com o sucesso que se conhece. Mas não desesperemos porque, em "acordês", é revelado esse "novo tempo": "o Programa Eleitoral que apresentámos aos portugueses assegura cada ação com uma certeza: Agora Portugal pode mais". Portugal, que serve de atracção filológica, é a metonímia política da "ação", da "certeza" e do "pode mais". Porque "nada está concluído, ainda, por isso a caminhada deve seguir" até à hubris onde, finalmente, é Portugal que nos convoca (no original épico, "Portugal convoca-nos").

A título de exercício político, a carta é tão ridícula como Pessoa concebia as de amor. Nem pouco mais ou menos se pode com ela.

João Gonçalves, aqui