Talvez o brasileiro exclame "Bela bunda", num arremedo mais redondamente poético que decorre da aliteração dos bês, mas nós, os lusos, exclamaremos, sem vergonha, "Belo cu". A dúvida que me assalta é com o grego: kallipygos quererá dizer "belo cu" ou "belas nádegas"? Ao pesquisar esse incomensurável repositório do conhecimento universal que é a internet, a expressão aparece de todas as boas maneiras e maus feitios. Entretanto, enquanto a resposta fundamentada pelo saber dos clássicos chega e não chega, vamos à Afrodite, dita Vénus pelos romanos, da belíssima parte de trás que na estátua é verdadeiramente a da frente.
Esta estátua é romana, do século I antes do nascimento do filho. Diz-se ser uma cópia em mármore de uma outra grega, em bronze, que estava num templo para o culto de Afrodite em Siracusa, na Sicília.
Sobre os templos de Afrodite muito haveria a dizer, e mais ainda a fazer se a nossa civilização fosse ainda abençoada com esses locais de culto sem ter que se pagar para lá entrar, como hoje ditam as leis do mercado. In illo tempore uma pessoa entrava no templo de deusa do amor e as suas sacerdotisas tratavam de nos alinhar os chacras pondo-nos em sintonia com o amor universal, aliviando-nos do stress, das más energias e das tensões acumuladas depois de um dia inteiro a filosofar ou pelejar conforme a ocupação de cada um. Seja como for esta Afrodite Kallipygos tem origem numa lenda que aqui evoco.
Conta-se que em Siracusa, duas belas irmãs, jovens e pastoras, talvez motivadas pela insegurança com parte de si mesmas, a de trás, e tendo dúvidas sobre qual delas teria o mais bonito e bem feito rabiosque e, talvez, chateadas de morte com o pastoreio, que não é das mais excitantes actividades para adolescentes, resolveram mostrá-lo, o rabiosque, ao mundo para que ele decidisse do argumento.
A coisa pode muito bem ter começado assim:
"Ai tou pr'aqui tão, tão entediada.Embora ali mostrar o cu,a quem passar à beira estrada"
... terá dito a mais velha em metro jâmbico que é como eu imagino que as pessoas falavam na altura, mesmo as pastoras.Por acaso, um rapaz, filho de um velho rico, passou e viu os dois belos traseiros. Depois de os "apreçar" decidiu que o da irmã mais velha era o mais bonito e voltou para casa apaixonado. De noite, não lhe vindo o sono porque não lhe ia da cabeça a bonita e redonda visão, contou ao irmão mais novo que também terá salivado pela noite dentro. No outro dia lá voltou o mais velho, levando consigo o mais novo, para voltar a apreciar, a apreçar e a confirmar o veredicto. O irmão mais novo discordou: para ele o da mais nova era o mais bonito. Também ele ficou apaixonado e também ele caiu de quatro (salvo seja porque ainda é cedo na história para isso). Os dois falaram então com o velho e rico pai que, como era de esperar de um velho e rico pai, os queria casar com betinhas. Mas eles foram irredutíveis. E casaram. Elas ficaram ricas e, diz a lenda, erigiram o templo da Afrodite Kallipygos, em Siracusa. Assim conta o deipnossofista Ateneu, ou melhor, assim conto eu baseado no que contou o Ateneu.
Da estátua original, em bronze, não há vestígio. Esta, que é uma cópia em mármore do período moderno, foi encontrada sem cabeça nem perna mas, por obra e graça dos deuses que a decapitaram, o cu manteve-se intacto.
No século XVI recomeça, então, a história desta bela estátua e deste kallipygos. A primeira restauração foi feita no século XVI, por encomenda dos Farnese, e foi essa restauração que fez da Afrodite Kallipygos a obra prima que é, e que foi (re)restaurada mais tarde, no século XVIII, por Carlo Albacini.Como era e em que posição estava a cabeça antes da restauração não se sabe. O que se sabe é que o primeiro restaurador esculpiu a cabeça da Afrodite a olhar para trás, para o soberbo traseiro, virando assim a estátua do avesso. De repente, e com este golpe de génio, a parte de trás passou a ser a da frente; o que devia estar escondido passou a ser o mais importante e nós tornámo-nos testemunhas de um momento íntimo da deusa: um momento de insegurança divina sublinhado pelo gesto tão feminino, tão casual e tão quotidiano que é o de verificar se está tudo no sítio: Está grande? Está descaído? Está flácido? Está feio? Está gordo? Está magro?Está óptimo pensamos nós ao olhar este kallipygos - ou qualquer kallipygos, para o efeito.Se ela estivesse a olhar para a frente, e ignorasse o rabo exposto inadvertida ou propositadamente à admiração universal, tratar-se-ia de descaramento - ou desrabamento se me é permitido um neologismo - embora fosse um descaramento seguro de si e dos seus encantos, como é normal nas deusas. Assim trata-se de uma mulher como as outras. Uma mulher que tendo o mais belo e o mais bem feito traseiro do mundo tem, ainda assim, que olhar para tirar as dúvidas.
Esta Afrodite Kallipygos esteve séculos no Palácio Farnese, em Roma, apropriadamente exposta na Sala dei Filosophi, rodeada pelas estátuas de dezoito grandes filósofos da antiguidade.Dizia o nosso bardo dos oculinhos "que não há mais metafísica no mundo senão chocolates." Mas há. Há muita mais metafísica num kallipygos. Digo eu que também vejo mal.
Pedro Bidarra, aqui