sábado, 25 de julho de 2015

O PESCADOR DE PEIXES



Poltrões de falsos punhos de renda
que cantais glória e vã grandeza
em clubes de mentiras e venenos
e outros truques, imbecis e obscenos,
que, revoltados, bem sabemos,
com que sujais a própria mesa.

Armor Pires Mota

Desde que se conhece, ama a pesca. No mar ou em rios, riachos ou ribeiros, albufeiras, lagoas ou barragens, pontões ou praias, chova ou faça sol, seja dia de trabalho, fim-de-semana ou dia santo de guarda, todos os dias dedica parte do seu tempo para ir atirar a sediela para a água, à espera que algum peixe abocanhe o isco que, invariavelmente, coloca sempre de forma cuidada no anzol.

Mas é ali, no enfiamento do velho carreiro que calcorreia há quase três quartos de século. Job, assim se chama o velho pescador, sente-se como peixe na água, porque é das bordaduras do parque do Carreiro Velho que este perranense dos quatro costados conhece cada palmo e cada centímetro daquelas águas turvas e lamacentas. Job sabe tudo sobre pesca: conhece os peixes como muito poucos e sabe que são uns bichos difíceis de enganar.  É por isso que está sempre atento, porque sabe que o isco tem de ser do melhor, que a linha tem de ter a espessura indicada, o anzol o tamanho apropriado e a bóia o peso adequado. E também sabe tudo sobre marés e conhece como a palma das suas calejadas mãos os nós a que deve soprar o vento para que a pescaria possa ter sucesso.

E, hoje, Job está irreprimivelmente ansioso, porque lá mais para o final da tarde regressará ao ponto onde, década atrás de década, tem sido, invariavelmente, o seu pouso preferido.

De galochas calçadas e chapéu na cabeça, rosto enrugado e cabisbaixo, como sempre, aí regressará, ao final desta tarde, com o carcomido banquinho numa mão e a comprida e fina cana e o balde na outra. A tiracolo, um cesto com bóias de várias cores, chumbadas de vários pesos e anzóis de vários tamanhos, impecavelmente arrumados numa caixinha de madeira esse presente de um casamento de há mais de cinquenta anos e com diversos compartimentos, que nunca se misturam com a valente e sempre cuidada dose de isco que sempre o acompanha.

Ao canto da boca, uma mortalha fumegante a invadir-lhe o gasto rosto, vergastado pelas agruras de uma vida já com quase oito dezenas de anos, mas que não o impede de ostentar o ténue sorriso que sistematicamente lhe achinesa os olhos.

Job sabe o quanto é importante o silêncio e o sossego em redor de quem, como ele, tem como missão olhar com a máxima atenção para as bóias que, a qualquer momento, podem desaparecer quando os peixes mordem o isco. E também sabe que os curiosos, os que nada sabem de pesca nem de peixes, ou os ganapos que se divertem a atirar pedras para a água, não compreendem a enigmática sensação de mistério que os pescadores sentem ao passarem horas a fio, imóveis, de olhar fixo, até sentirem qualquer coisa a remexer-se debaixo de água!

E que, apesar de tudo, nunca desistem mesmo quando, uma vez após outra, içam o anzol, já sem isco, sozinho e a baloiçar ao sabor da brisa que aí, mesmo em pleno estio, sempre se faz sentir.

Job sabe de tudo isto. E por isso tem presente a amargura que sentiu quando uns homens da região de Aveiro para ali demandaram há cerca de dez meses, certamente a mando de alguns outros, para revirarem aquele local do avesso. Para ali fazerem coisas modernas, chegou ele a ouvir dizer, que iriam transformar o velho e sossegado parque num verdadeiro local de reunião e convívio.

Foram noites e noites de agonia, um sofrimento que o velho pescador enfrentou quase sempre sozinho, porque em algumas vezes, não mais do que quatro, jura ele beijando os indicadores cruzados, teve a visita de uma teimosa e roliça lágrima a salgar-lhe a tisnada pele.
Seria coisa para ser feita em quatro meses! disseram os engravatados visitantes.

Mas a verdade é que só hoje, quase um ano depois, é que as vedações estão retiradas para receber as individualidades que lá estarão para inaugurar a obra, um parque de merendas com capacidade para multidões de mais de duas centenas de pessoas, um cais de barcos, zona de pesca, zona de churrasco e lava-louça, sanitários e posto de primeiros socorros, parque infantil, palco ao ar livre, terreiro de festas, dois postos de observação da natureza, restaurante-bar, passadiços elevados e até mesmo um amplo parque de estacionamento.

Job está certo de que será a última vez que estes pescadores de votos por ali aparecerão.

Mas Job, que é homem digno e reconhecido, está-lhes grato. Afinal, mesmo tendo sido gasto perto de um milhão de euros, a obra está dada por concluída e é hoje inaugurada sem qualquer zona de sombra. Dessa forma, dificilmente aparecerão visitantes para utilizar o local, o que a muitos parecerá quase uma ignomínia. Mas Job bem sabe que não é assim, porque à inteligência dos inteligentes nada escapa. E, por isso, se o local não tem quaisquer sombras, é porque os pescadores de votos se lembraram dos pescadores de peixes ou, quem sabe, até mesmo só de si…

Desta forma, Job manter-se-á dono e senhor do parque do Carreiro Velho, onde poderá continuar a dedicar-se à pesca sem o incómodo de desconhecidos que nada percebem do assunto.

Nada que numa dúzia de anos não esteja modificado, quando as árvores agora plantadas tiverem fortes troncos a frondosas copas. Mas Job acredita que nessa altura já a terra há-de estar a comer-lhe a vaidade que hoje sente.

Convicto de que a pequena santa ouviu as suas preces, Job já só pensa no dia em que, com domingueira indumentária, subirá ao altar-mor para deixar uma vela acesa de agradecimento a S. Pedro, o apóstolo padroeiro dos pescadores de peixes. E, nesse dia, há-de rezar por tanto tempo, que talvez fique sem tempo para pescar.