Poltrões de falsos punhos de renda
que cantais glória e vã grandeza
em clubes de mentiras e venenos
e outros truques, imbecis e obscenos,
que, revoltados, bem sabemos,
com que sujais a própria mesa.
Armor Pires Mota
Desde que se conhece, ama a pesca.
No mar ou em rios, riachos ou ribeiros, albufeiras, lagoas ou barragens,
pontões ou praias, chova ou faça sol, seja dia de trabalho, fim-de-semana ou
dia santo de guarda, todos os dias dedica parte do seu tempo para ir atirar a
sediela para a água, à espera que algum peixe abocanhe o isco que,
invariavelmente, coloca sempre de forma cuidada no anzol.
E, hoje, Job está
irreprimivelmente ansioso, porque lá mais para o final da tarde regressará ao
ponto onde, década atrás de década, tem sido, invariavelmente, o seu pouso
preferido.
De galochas calçadas e chapéu na
cabeça, rosto enrugado e cabisbaixo, como sempre, aí regressará, ao final desta
tarde, com o carcomido banquinho numa mão e a comprida e fina cana e o balde na
outra. A tiracolo, um cesto com bóias de várias cores, chumbadas de vários
pesos e anzóis de vários tamanhos, impecavelmente arrumados numa caixinha de
madeira – esse presente de um
casamento de há mais de cinquenta anos – e com diversos compartimentos, que nunca se misturam com a valente e sempre
cuidada dose de isco que sempre o acompanha.
Ao canto da boca, uma mortalha
fumegante a invadir-lhe o gasto rosto, vergastado pelas agruras de uma vida já
com quase oito dezenas de anos, mas que não o impede de ostentar o ténue
sorriso que sistematicamente lhe achinesa os olhos.
Job sabe o quanto é importante o
silêncio e o sossego em redor de quem, como ele, tem como missão olhar com a
máxima atenção para as bóias que, a qualquer momento, podem desaparecer quando
os peixes mordem o isco. E também sabe que os curiosos, os que nada sabem de
pesca nem de peixes, ou os ganapos que se divertem a atirar pedras para a água,
não compreendem a enigmática sensação de mistério que os pescadores sentem ao
passarem horas a fio, imóveis, de olhar fixo, até sentirem qualquer coisa a
remexer-se debaixo de água!
E que, apesar de tudo, nunca
desistem mesmo quando, uma vez após outra, içam o anzol, já sem isco, sozinho e
a baloiçar ao sabor da brisa que aí, mesmo em pleno estio, sempre se faz
sentir.
Job sabe de tudo isto. E por
isso tem presente a amargura que sentiu quando uns homens da região de Aveiro
para ali demandaram há cerca de dez meses, certamente a mando de alguns outros,
para revirarem aquele local do avesso. Para ali fazerem coisas modernas, chegou
ele a ouvir dizer, que iriam transformar o velho e sossegado parque num
verdadeiro local de reunião e convívio.
Foram noites e noites de agonia,
um sofrimento que o velho pescador enfrentou quase sempre sozinho, porque em
algumas vezes, não mais do que quatro, jura ele beijando os indicadores
cruzados, teve a visita de uma teimosa e roliça lágrima a salgar-lhe a tisnada
pele.
– Seria coisa para ser feita em
quatro meses! – disseram os
engravatados visitantes.
Mas a verdade é que só hoje,
quase um ano depois, é que as vedações estão retiradas para receber as
individualidades que lá estarão para inaugurar a obra, um parque de merendas
com capacidade para multidões de mais de duas centenas de pessoas, um cais de
barcos, zona de pesca, zona de churrasco e lava-louça, sanitários e posto de
primeiros socorros, parque infantil, palco ao ar livre, terreiro de festas,
dois postos de observação da natureza, restaurante-bar, passadiços elevados e
até mesmo um amplo parque de estacionamento.
Job está certo de que será a
última vez que estes pescadores de votos por ali aparecerão.
Mas Job, que é homem digno e
reconhecido, está-lhes grato. Afinal, mesmo tendo sido gasto perto de um milhão
de euros, a obra está dada por concluída e é hoje inaugurada sem qualquer zona
de sombra. Dessa forma, dificilmente aparecerão visitantes para utilizar o
local, o que a muitos parecerá quase uma ignomínia. Mas Job bem sabe que não é
assim, porque à inteligência dos inteligentes nada escapa. E, por isso, se o
local não tem quaisquer sombras, é porque os pescadores de votos se lembraram
dos pescadores de peixes ou, quem sabe, até mesmo só de si…
Desta forma, Job manter-se-á
dono e senhor do parque do Carreiro Velho, onde poderá continuar a dedicar-se à
pesca sem o incómodo de desconhecidos que nada percebem do assunto.
Nada que numa dúzia de anos não
esteja modificado, quando as árvores agora plantadas tiverem fortes troncos a
frondosas copas. Mas Job acredita que nessa altura já a terra há-de estar a
comer-lhe a vaidade que hoje sente.
Convicto de que a pequena santa
ouviu as suas preces, Job já só pensa no dia em que, com domingueira
indumentária, subirá ao altar-mor para deixar uma vela acesa de agradecimento a
S. Pedro, o apóstolo padroeiro dos pescadores de peixes. E, nesse dia, há-de
rezar por tanto tempo, que talvez fique sem tempo para pescar.