É coisa tão dificultosa acomodar-se a trabalhar para viver,
quem está costumado a outra vida,
que esta mesma dificuldade
é a que inventou a arte e artes de furtar.
António Vieira
Depois de uma profusa
distribuição pública de propaganda informativa, já não há quem ignore que a Ladra[1] está
em funções em nove municípios (Águeda, Albergaria-a-Velha, Aveiro, Estarreja,
Ílhavo, Murtosa, Oliveira do Bairro, Sever do Vouga e Vagos), estando para
breve a entrada em actividade legal desta Ladra no município de Ovar.
Recorde-se que nos seus termos contratuais, esta Ladra operará dentro da lei durante 12,5 mandatos autárquicos, tendo como entidade gestora uma empresa da qual são accionistas minoritários (49%) os municípios aderentes, sendo a ADP-Águas de Portugal, S.A. a accionista maioritária (51%), cujos administradores já revelaram que um dos objectivos de funcionamento desta Ladra é proceder à convergência gradual de tarifários num valor que a USA (União dos Sindicatos de Aveiro) estima que em 2014 venha a ser fixado em 2,83 €/m3, que é praticamente o dobro da média nacional. Para já, neste ano de 2010, os tarifários não vão aumentar em Aveiro e Albergaria (municípios com os preços mais elevados); no entanto, para “início de conversa”, em Estarreja e Oliveira do Bairro o aumento é de 1,00 €; em Ílhavo, Murtosa, Sever do Vouga e Águeda esse aumento é de 1,00 € para os consumidores que gastem até 5m3 / mês e de 2,00 € se esse consumo for de 10m3. Já em Vagos, município onde as tarifas são excepcionalmente baixas, neste ano de 2010 o aumento é de 2,47 € para 5m3 e 3,60 € para 10m3.
No entanto, com esta negociata,
não serão só as tarifas a subir. Com a sua adesão, cada um dos municípios não
só perde o controlo sobre o sistema tarifário e a sua evolução futura durante
meio século como afecta às leis do mercado a titularidade da sua água,
mercantilizando um recurso vital e necessário sem atender às necessidades e
dificuldades dos seus munícipes, e sem qualquer controlo por parte destes sobre
esse importante recurso da humanidade.
Tratando-se, como efectivamente
se trata, da entrega a uma empresa gestora da gestão dos sistemas municipais
para as actividades de água e de saneamento, não subsistem quaisquer dúvidas de
que essa entrega trará inevitáveis implicações no nível de vida dos munícipes
durante as próximas gerações. No entanto, apesar de se tratar de uma hipoteca
da sua água enquanto recurso estratégico dos respectivos patrimónios, em nenhum
dos municípios aderentes houve qualquer debate público que lúcida e
transparentemente envolvesse a sociedade civil como principal visada pelas
consequências decorrentes desta adesão.
No caso de Oliveira do Bairro,
esta adesão foi, como todos bem recordam, viabilizada através de um estranho e
controverso processo político traduzido no facto de, em menos de três semanas,
a Assembleia Municipal ter dado o dito pelo não dito, através de uma segunda
deliberação que só foi possível, porque houve quem tivesse embarcado em
“argumentos da treta” e, de forma muito futebolística apesar de nada cristiana,
marcasse em pontapé de bicicleta um magistral autogolo na própria baliza, que
não só revogou a deliberação de recusa inicialmente tomada como também
determinou a descida do município à divisão inferior, àquela onde se tomam
decisões ínvias e pouco claras.
Quanto à substância da questão,
a minha posição é absolutamente clara: entendo que o modelo tem inegáveis
vantagens para municípios mais carenciados de infra-estruturas, mas não
garante, de forma inequívoca, uma justa e equilibrada distribuição
custo/benefício. Ou seja, a entidade gestora desta Ladra não surge com uma
clara motivação de salvaguarda do interesse público e de valorização da água
como recurso natural de grande valor económico, estratégico e social, essencial
à existência e bem-estar da humanidade e aos ecossistemas do planeta, um bem
único e comum que não pode ser substituído nem reproduzido.
De facto, para os municípios
que, como o de Oliveira do Bairro, manterão praticamente inalteradas as taxas
de cobertura das respectivas redes de água e saneamento, esta Ladra
constitui-se unicamente como uma forma de arrecadar verbas sem atender às
necessidades e dificuldades dos munícipes, e sem qualquer controlo por parte
destes sobre esse importante recurso vital e necessário da humanidade. Paralelamente,
esta Ladra consubstancia uma reestruturação que não só reduz o número de
trabalhadores que em cada município estão afectos ao serviço das águas e
saneamento como coloca em risco a qualidade do serviço prestado aos munícipes.
Com a legalidade operacional
desta Ladra, municípios como o de Oliveira do Bairro optaram por seguir o
caminho mais fácil, e através de uma negociação pouco competente, aderiram a um
negócio absolutamente ruinoso, entregando por umas “cascas d’alho” a gestão de
um recurso estratégico, talvez o mais estratégico do futuro: donos de negócios
estáveis e rentáveis assentes em elevadas taxas de cobertura na distribuição de
água e saneamento (em Oliveira do Bairro, estas taxas rondam os 90%!), e com
uma perspectiva de investimentos diminutos, estes municípios tomaram uma
decisão indevidamente avaliada, uma vez que não tiveram em conta os trunfos de
que dispunham. Ao fazê-lo, evidenciaram a sua subserviência à toda-poderosa ADP-Águas
de Portugal, S.A., submissão esta consubstanciada na aceitação de normas e
cláusulas verdadeiramente leoninas, uma vez que, na relação estabelecida, a
accionista maioritária retira a totalidade dos lucros, benefícios e
liberalidades, vendo-se os municípios aderentes a braços com os custos e com as
perdas.
Constituída à sua revelia,
através de um processo envolto num incompreensível secretismo, as populações
são agora confrontadas com a existência de uma empresa que declaradamente se
apresenta para resolver as situações de défice de curto prazo das autarquias
aderentes, ao arrepio dos elementares princípios insertos na Carta Europeia da
Água, proclamada em Estrasburgo em 6 de Maio de 1968, e na declaração do Comité
da ONU para os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, para quem “o direito
humano à água é indispensável para vida com dignidade humana. É um
pré-requisito da realização de outros direitos humanos”.
Seria importante que na defesa
do interesse dos munícipes não fosse esquecido que a adesão a esta parceria
envolve, por parte dos municípios aderentes, a perda do seu controlo sobre o
sistema tarifário e a sua evolução futura; mas que fosse especialmente
recordado que ainda há poucos meses o Tribunal de Contas tornou público que a ADP
– Águas de Portugal, S.A., a
accionista maioritária da empresa que gere esta Ladra, gastou perto de cinco
milhões de euros em viaturas para os administradores e funcionários e prémios
sem qualquer relação com o desempenho, assim agravando a situação deficitária
do grupo que, entre 2004 e 2005, registou só 75,5 milhões de euros negativos.
Se nos lembrarmos que o projecto
de modelo tarifário que a entidade gestora desta Ladra elaborou, juntamente com
os municípios, “tem como pressuposto a cobertura dos custos do serviço”, está
mais do que visto quem é que vai pagar os luxos e as indemnizações dos senhores
administradores.
Como se diz popularmente, “as
cadelas apressadas parem os filhos cegos”. Se optarmos por algo mais erudito,
bem podemos dizer que, bem mais perigosas do que os erros razoáveis, são as
verdades irracionalmente sustentadas.
[1]
Ladra – Ligação à ADRA – Águas
da Região de Aveiro, S.A.