sábado, 6 de junho de 2015

A LADRA* JÁ ESTÁ EM FUNÇÕES

É coisa tão dificultosa acomodar-se a trabalhar para viver,
quem está costumado a outra vida,
que esta mesma dificuldade
é a que inventou a arte e artes de furtar.
 
António Vieira

Depois de uma profusa distribuição pública de propaganda informativa, já não há quem ignore que a Ladra[1] está em funções em nove municípios (Águeda, Albergaria-a-Velha, Aveiro, Estarreja, Ílhavo, Murtosa, Oliveira do Bairro, Sever do Vouga e Vagos), estando para breve a entrada em actividade legal desta Ladra no município de Ovar.
 

Recorde-se que nos seus termos contratuais, esta Ladra operará dentro da lei durante 12,5 mandatos autárquicos, tendo como entidade gestora uma empresa da qual são accionistas minoritários (49%) os municípios aderentes, sendo a ADP-Águas de Portugal, S.A. a accionista maioritária (51%), cujos administradores já revelaram que um dos objectivos de funcionamento desta Ladra é proceder à convergência gradual de tarifários num valor que a USA (União dos Sindicatos de Aveiro) estima que em 2014 venha a ser fixado em 2,83 €/m3, que é praticamente o dobro da média nacional. Para já, neste ano de 2010, os tarifários não vão aumentar em Aveiro e Albergaria (municípios com os preços mais elevados); no entanto, para “início de conversa”, em Estarreja e Oliveira do Bairro o aumento é de 1,00 €; em Ílhavo, Murtosa, Sever do Vouga e Águeda esse aumento é de 1,00 € para os consumidores que gastem até 5m3 / mês e de 2,00 € se esse consumo for de 10m3. Já em Vagos, município onde as tarifas são excepcionalmente baixas, neste ano de 2010 o aumento é de 2,47 € para 5m3 e 3,60 € para 10m3.
 
No entanto, com esta negociata, não serão só as tarifas a subir. Com a sua adesão, cada um dos municípios não só perde o controlo sobre o sistema tarifário e a sua evolução futura durante meio século como afecta às leis do mercado a titularidade da sua água, mercantilizando um recurso vital e necessário sem atender às necessidades e dificuldades dos seus munícipes, e sem qualquer controlo por parte destes sobre esse importante recurso da humanidade.
 
Tratando-se, como efectivamente se trata, da entrega a uma empresa gestora da gestão dos sistemas municipais para as actividades de água e de saneamento, não subsistem quaisquer dúvidas de que essa entrega trará inevitáveis implicações no nível de vida dos munícipes durante as próximas gerações. No entanto, apesar de se tratar de uma hipoteca da sua água enquanto recurso estratégico dos respectivos patrimónios, em nenhum dos municípios aderentes houve qualquer debate público que lúcida e transparentemente envolvesse a sociedade civil como principal visada pelas consequências decorrentes desta adesão.
 
No caso de Oliveira do Bairro, esta adesão foi, como todos bem recordam, viabilizada através de um estranho e controverso processo político traduzido no facto de, em menos de três semanas, a Assembleia Municipal ter dado o dito pelo não dito, através de uma segunda deliberação que só foi possível, porque houve quem tivesse embarcado em “argumentos da treta” e, de forma muito futebolística apesar de nada cristiana, marcasse em pontapé de bicicleta um magistral autogolo na própria baliza, que não só revogou a deliberação de recusa inicialmente tomada como também determinou a descida do município à divisão inferior, àquela onde se tomam decisões ínvias e pouco claras.
 
Quanto à substância da questão, a minha posição é absolutamente clara: entendo que o modelo tem inegáveis vantagens para municípios mais carenciados de infra-estruturas, mas não garante, de forma inequívoca, uma justa e equilibrada distribuição custo/benefício. Ou seja, a entidade gestora desta Ladra não surge com uma clara motivação de salvaguarda do interesse público e de valorização da água como recurso natural de grande valor económico, estratégico e social, essencial à existência e bem-estar da humanidade e aos ecossistemas do planeta, um bem único e comum que não pode ser substituído nem reproduzido.
 
De facto, para os municípios que, como o de Oliveira do Bairro, manterão praticamente inalteradas as taxas de cobertura das respectivas redes de água e saneamento, esta Ladra constitui-se unicamente como uma forma de arrecadar verbas sem atender às necessidades e dificuldades dos munícipes, e sem qualquer controlo por parte destes sobre esse importante recurso vital e necessário da humanidade. Paralelamente, esta Ladra consubstancia uma reestruturação que não só reduz o número de trabalhadores que em cada município estão afectos ao serviço das águas e saneamento como coloca em risco a qualidade do serviço prestado aos munícipes.
 
Com a legalidade operacional desta Ladra, municípios como o de Oliveira do Bairro optaram por seguir o caminho mais fácil, e através de uma negociação pouco competente, aderiram a um negócio absolutamente ruinoso, entregando por umas “cascas d’alho” a gestão de um recurso estratégico, talvez o mais estratégico do futuro: donos de negócios estáveis e rentáveis assentes em elevadas taxas de cobertura na distribuição de água e saneamento (em Oliveira do Bairro, estas taxas rondam os 90%!), e com uma perspectiva de investimentos diminutos, estes municípios tomaram uma decisão indevidamente avaliada, uma vez que não tiveram em conta os trunfos de que dispunham. Ao fazê-lo, evidenciaram a sua subserviência à toda-poderosa ADP-Águas de Portugal, S.A., submissão esta consubstanciada na aceitação de normas e cláusulas verdadeiramente leoninas, uma vez que, na relação estabelecida, a accionista maioritária retira a totalidade dos lucros, benefícios e liberalidades, vendo-se os municípios aderentes a braços com os custos e com as perdas.
 
Constituída à sua revelia, através de um processo envolto num incompreensível secretismo, as populações são agora confrontadas com a existência de uma empresa que declaradamente se apresenta para resolver as situações de défice de curto prazo das autarquias aderentes, ao arrepio dos elementares princípios insertos na Carta Europeia da Água, proclamada em Estrasburgo em 6 de Maio de 1968, e na declaração do Comité da ONU para os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, para quem “o direito humano à água é indispensável para vida com dignidade humana. É um pré-requisito da realização de outros direitos humanos”.
 
Seria importante que na defesa do interesse dos munícipes não fosse esquecido que a adesão a esta parceria envolve, por parte dos municípios aderentes, a perda do seu controlo sobre o sistema tarifário e a sua evolução futura; mas que fosse especialmente recordado que ainda há poucos meses o Tribunal de Contas tornou público que a ADP Águas de Portugal, S.A., a accionista maioritária da empresa que gere esta Ladra, gastou perto de cinco milhões de euros em viaturas para os administradores e funcionários e prémios sem qualquer relação com o desempenho, assim agravando a situação deficitária do grupo que, entre 2004 e 2005, registou só 75,5 milhões de euros negativos.
 
Se nos lembrarmos que o projecto de modelo tarifário que a entidade gestora desta Ladra elaborou, juntamente com os municípios, “tem como pressuposto a cobertura dos custos do serviço”, está mais do que visto quem é que vai pagar os luxos e as indemnizações dos senhores administradores.
 
Como se diz popularmente, “as cadelas apressadas parem os filhos cegos”. Se optarmos por algo mais erudito, bem podemos dizer que, bem mais perigosas do que os erros razoáveis, são as verdades irracionalmente sustentadas.
 
 
[1] Ladra Ligação à ADRA Águas da Região de Aveiro, S.A.