sábado, 9 de maio de 2015

CARTA AO PAI NATAL

Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza...
A um morto nada se recusa,
Eu quero por força ir de burro.
 
Mário de Sá Carneiro

 
Querido Pai Natal,
 
Escrevo-te esta carta[1] para te pedir o meu presente para este Natal.

Há três natais que me ofereces palha! Por isso, acho que já é altura de me dares alguma coisa de que goste: quero que me dês um cavalinho.

Bem sei que o feno que me tens dado é de altíssima qualidade, daquele que o nosso governo paga para alimentar os animais presentes nos eventos que organiza e que, nos mesmos dias e pelos mesmos fornecedores, também é descarregado pelo mesmo pessoal nas coudelarias de grandes criadores do país.

Mas, como já tenho o estábulo atulhado e não sei o que fazer a tanta palha, neste Natal, quero mesmo é que me dês um cavalinho. É verdade que não quero o cavalinho só para comer a palha que tenho. Quero-o, porque gosto muito de cavalos. Não de todos. Só daqueles que têm garbo e nobreza de carácter; dos outros, daqueles que dão coices quando alguém lhes diz na cara aquilo que não gostam de ouvir, desses não gosto.

Logo que mo dês, tratarei de o baptizar. Vai chamar-se “Sorridente” ou, talvez, “Diamante”. Não sei ainda bem, mas terá o nome digno de um campeão. Prometo-te que dedicarei dias inteiros ao meu cavalinho. Criá-lo-ei numa boxe novinha em folha e escovar-lhe-ei o pêlo cinco vezes por dia. E, assim, terei mais de meio ano para o preparar e apresentar na feira do próximo ano, para o mostrar aos mais de 500.000 visitantes que por lá passam.

Ficarão todos roidínhos de inveja quando virem o meu cavalinho vencer todas as provas de saltos em que participar! E, quando aparecerem os jornalistas da especialidade, rodeá-los-ei de atenções e quererei sempre saber se está tudo a correr bem. Assim, de certeza que dirão bem de mim e do meu cavalinho. E até pode ser que me tratem por “professor”!

Já falei com uns fulanos para irem comigo ao cartório assinar a escritura da HORSE, uma associação que quero constituir, tendo um objectivo muito mais ambicioso do que a simples realização de actividades que visem a promoção e valorização do cavalo.

Podes ficar descansado, porque serei eu o presidente vitalício dessa associação! Até já me imagino na sessão de apresentação, sozinho, a dizer em alto e bom som que dinamizarei eventos e trarei para a cidade, ensino, etapas, campeonatos intercontinentais, dérbi, atrelagens e diferentes modalidades hípicas. Despertarei o interesse das televisões de todo o mundo e a nossa cidade passará a ser a montra equestre do planeta. É claro que, para que tudo isto aconteça, tem que haver um grande empenho do nosso governo.

Não posso ser apenas eu a empenhar-me pessoalmente, preconizando e apresentando não só as normas de funcionamento da feira mas também as propostas de celebração de protocolos e de adjudicação de serviços, que envolvam a realização de concursos internacionais de saltos, a realização de jornadas internacionais de horseball e a realização de colóquios com a presença de grandes nomes do mundo equestre. Só assim será possível que estes eventos constituam uma verdadeira mais-valia para a cidade e para o mundo, ao contrário do que aconteceu com o último concurso, que nem sequer concitou o interesse da comunicação social local, publicada na semana seguinte à da sua realização: “JB” zero referências! “LC” nem vislumbre! “RB” – nem uma letrinha, sequer! Isto é coisa que não se pode repetir!

A partir do próximo dia 25 de Dezembro, tudo se alterará radicalmente: logo pela manhãzinha, assim que eu chegar junto do meu sapatinho, digo, da minha ferradura, e der de caras com o cavalinho que quero que me dês, vou começar a trabalhar para que essa mudança seja uma realidade. Prometo-te que, a partir dessa data, tudo será diferente! Sob minha palavra de honra, tudo farei para que, ao concurso internacional de saltos cá do burgo, sejam atribuídas, pelo menos, seis estrelas.

E sem esquecer, obviamente, a urgente reedificação da setecentista Casa de Câmara e Cadeia da cidade, para a transformar num moderníssimo Centro Coudélico Internacional!

Como sabes, o governo só tem três formas de actuar: uma primeira, através da realização de propostas inteligentes e originais e que visam a inequívoca prossecução do interesse público; uma segunda, através da concretização de propostas que, sendo inteligentes podem carecer de originalidade e cuja realização, apesar disso, assenta na moral, na transparência e na ética; e, finalmente, através da realização de propostas que, apesar de originais, não são inteligentes uma vez que, em regra, a sua execução convive paredes meias com esquemas duvidosos e com esperteza saloia.

É certo que a mudança e a diferença a levar por diante não se compadecem com as regras a que estão sujeitas as duas primeiras formas de agir. E se para assumir a mudança há que ter descaramento para realizar eventos que visem satisfazer interesses particulares, já para assumir a diferença é preciso falta de vergonha para afectar o custo destes eventos ao erário público, uma vez que daí resulta uma inevitável acumulação de prejuízos. Mas isso também não interessa nada. O que interessa é assumir a mudança e a diferença, mesmo que não se cumpram as regras.

 Saudações natalícias do impaciente,

Job 

[1] Escrita na Terra do Nunca. Qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência