Que o meu
caixão vá sobre um burro
Ajaezado à
andaluza...
A um morto
nada se recusa,
Eu quero por
força ir de burro.
Mário de Sá
Carneiro
Querido Pai Natal,
Escrevo-te esta carta[1] para te pedir o meu presente
para este Natal.
Há três natais que me ofereces palha! Por isso, acho
que já é altura de me dares alguma coisa de que goste: quero que me dês um
cavalinho.
Bem sei que o feno que me tens dado é de altíssima
qualidade, daquele que o nosso governo paga para alimentar os animais presentes
nos eventos que organiza e que, nos mesmos dias e pelos mesmos fornecedores,
também é descarregado pelo mesmo pessoal nas coudelarias de grandes criadores
do país.
Mas, como já tenho o estábulo atulhado e não sei o que
fazer a tanta palha, neste Natal, quero mesmo é que me dês um cavalinho. É
verdade que não quero o cavalinho só para comer a palha que tenho. Quero-o,
porque gosto muito de cavalos. Não de todos. Só daqueles que têm garbo e
nobreza de carácter; dos outros, daqueles que dão coices quando alguém lhes diz
na cara aquilo que não gostam de ouvir, desses não gosto.
Logo que mo dês, tratarei de o baptizar. Vai chamar-se
“Sorridente” ou, talvez, “Diamante”. Não sei ainda bem, mas terá o nome digno
de um campeão. Prometo-te que dedicarei dias inteiros ao meu cavalinho. Criá-lo-ei
numa boxe novinha em folha e escovar-lhe-ei o pêlo cinco vezes por dia. E,
assim, terei mais de meio ano para o preparar e apresentar na feira do próximo
ano, para o mostrar aos mais de 500.000 visitantes que por lá passam.
Ficarão todos roidínhos de inveja quando virem o meu
cavalinho vencer todas as provas de saltos em que participar! E, quando
aparecerem os jornalistas da especialidade, rodeá-los-ei de atenções e quererei
sempre saber se está tudo a correr bem. Assim, de certeza que dirão bem de mim
e do meu cavalinho. E até pode ser que me tratem por “professor”!
Já falei com uns fulanos para irem comigo ao cartório
assinar a escritura da HORSE, uma associação que quero constituir, tendo um
objectivo muito mais ambicioso do que a simples realização de actividades que
visem a promoção e valorização do cavalo.
Podes ficar descansado, porque serei eu o presidente
vitalício dessa associação! Até já me imagino na sessão de apresentação,
sozinho, a dizer em alto e bom som que dinamizarei eventos e trarei para a
cidade, ensino, etapas, campeonatos intercontinentais, dérbi, atrelagens e
diferentes modalidades hípicas. Despertarei o interesse das televisões de todo
o mundo e a nossa cidade passará a ser a montra equestre do planeta. É claro
que, para que tudo isto aconteça, tem que haver um grande empenho do nosso
governo.
Não posso ser apenas eu a empenhar-me pessoalmente,
preconizando e apresentando não só as normas de funcionamento da feira mas
também as propostas de celebração de protocolos e de adjudicação de serviços,
que envolvam a realização de concursos internacionais de saltos, a realização
de jornadas internacionais de horseball
e a realização de colóquios com a presença de grandes nomes do mundo equestre. Só
assim será possível que estes eventos constituam uma verdadeira mais-valia para
a cidade e para o mundo, ao contrário do que aconteceu com o último concurso,
que nem sequer concitou o interesse da comunicação social local, publicada na
semana seguinte à da sua realização: “JB” – zero
referências! “LC” – nem vislumbre! “RB” – nem uma
letrinha, sequer! Isto é coisa que não se pode repetir!
A partir do próximo dia 25 de Dezembro, tudo se
alterará radicalmente: logo pela manhãzinha, assim que eu chegar junto do meu
sapatinho, digo, da minha ferradura, e der de caras com o cavalinho que quero
que me dês, vou começar a trabalhar para que essa mudança seja uma realidade.
Prometo-te que, a partir dessa data, tudo será diferente! Sob minha palavra de
honra, tudo farei para que, ao concurso internacional de saltos cá do burgo,
sejam atribuídas, pelo menos, seis estrelas.
E sem esquecer, obviamente, a urgente reedificação da
setecentista Casa de Câmara e Cadeia da cidade, para a transformar num
moderníssimo Centro Coudélico Internacional!
Como sabes, o governo só tem três formas de actuar:
uma primeira, através da realização de propostas inteligentes e originais e que
visam a inequívoca prossecução do interesse público; uma segunda, através da
concretização de propostas que, sendo inteligentes podem carecer de originalidade
e cuja realização, apesar disso, assenta na moral, na transparência e na ética;
e, finalmente, através da realização de propostas que, apesar de originais, não
são inteligentes uma vez que, em regra, a sua execução convive paredes meias
com esquemas duvidosos e com esperteza saloia.
É certo que a mudança e a diferença a levar por diante
não se compadecem com as regras a que estão sujeitas as duas primeiras formas
de agir. E se para assumir a mudança há que ter descaramento para realizar
eventos que visem satisfazer interesses particulares, já para assumir a
diferença é preciso falta de vergonha para afectar o custo destes eventos ao
erário público, uma vez que daí resulta uma inevitável acumulação de prejuízos.
Mas isso também não interessa nada. O que interessa é assumir a mudança e a
diferença, mesmo que não se cumpram as regras.
Saudações
natalícias do impaciente,
Job
[1] Escrita na
Terra do Nunca. Qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência