O quotidiano anda cheio de presenças suspeitas,
amigos,
nós é que, almas cegas,
as não pressentimos.
Arsénio de Bustos (Arsénio Mota)
Mesmo sabendo que, em todas as
questões constituintes do poder em exercício, o que prevalece é a tirania da
parte contra o todo, não é de aceitar o desvirtuar da democracia e a sua
redução a um plano de contingência ou a um jogo de ilusões, em que fique
claramente desnudada a vertigem autoritária de quem exerce o poder.
O que se espera dos políticos,
face aos desideratos funcionais de apego ao interesse público, é uma
personalidade insuspeita e irrepreensível, no cumprimento dos desígnios da
ética e da transparência consagrados constitucionalmente e conformes aos
princípios subjacentes da igualdade, da proporcionalidade e da justiça social.
No entanto, o que por aí se vai vendo são cada vez mais demonstrações que
evidenciam um grau de culpa muito elevado, atendendo ao facto de a recusa
social de certas condutas ser inequivocamente grave, roçando mesmo a
promiscuidade e lesando claramente a isenção e a imparcialidade.
A título de exemplo, basta
lembrar a arrogância com que o poder manifesta a intenção de sancionar o
comportamento dos contribuintes que não entreguem ao “Senhor Estado” os valores
de IVA, mesmo antes de recebido este imposto daqueles a quem vendam bens ou
prestem serviços!
Só que, face a esta perspectiva
usurpadora, que medidas é que o “Senhor Estado” tomou para se punir a si
próprio e às autarquias que, como é sabido, são os devedores mais relapsos?
Vistas as coisas deste modo
simples, é de atormentar o pensamento que, cada vez mais, se vai enraizando na
sociedade económica e política em que vivemos, segundo a qual os dirigentes que
nos vão governando são cada vez mais avessos aos valores morais e aos
princípios da idoneidade e da seriedade, pois são cada vez mais raros aqueles
que dizem a verdade em lugar de vender ilusões.
Mas como há, e continuará a
haver, cidadãos livres que não se submetem à vontade inconstante, incerta e
arbitrária de outros homens, por mais poderosos que estes sejam ou façam crer
que são, ainda há esperança de que, um dia, possamos ser governados por quem
mande às malvas a arrogância e a mesquinhez e exerça discretamente o poder
inspirado na sensatez e nos bons costumes.
Isso só acontecerá, porém,
quando o exercício dos respectivos cargos públicos for pessoal e exemplarmente
responsabilizado, por forma a erradicar a subversão dos desígnios próprios do
poder, desde logo no poder local onde é curtíssima a distância que liga
autarcas a eleitores. Aí, sim! Quando isso acontecer, já não serão os caprichos
dos governantes e autarcas que querem a todo o custo perpetuar a sua presença
no poder com a edificação de obras megalómanas, a determinar a opção por
projectos cuja execução não resulte numa centelha de retorno e cuja lógica
apenas demanda o engrossar da despesa pública. Nessa altura, a determinação
dessas decisões será feita em função do interesse público e das necessidades
reais do país ou dos concelhos e já não em função do tamanho do ego dos
titulares do poder.
Talvez, então, Portugal deixe de
ter municípios desmemoriados e tendentes para o insignificante, onde o
desaparecimento de autarcas que tenham exercido o cargo de presidente de câmara
durante treze anos, modelar e dedicadamente, e com um brio que constitui
inquestionável exemplo a seguir por qualquer família autárquica, seja
circunstância bastante para ser decretado luto municipal com a inerente
colocação a meia haste da bandeira do município! São esses os meus votos.
Sinceros.