À medida que assenta a poeira da violência que, na última semana, matou 17 pessoas inocentes em França, sobe de tom o debate sobre a linha editorial seguida pelo "Charles Hebdo".
Sempre ressalvando que "violência nunca", não faltam vozes recordando que os cartunes são "ofensivos" e deveriam ser contidos pelo "bom senso", porque limitam a liberdade religiosa de milhões de muçulmanos e católicos.
Pode fazer-se sátira política, brincar com chefes de Estado, criar anedotas sobre paixões clubísticas, desenvolver anedotário com tiques socioculturais. Mas com a religião não se brinque: é matéria sagrada.
Ora eu prefiro subscrever o comentário com que o filósofo belga Édouard Delruelle refletiu esta semana sobre o tema. "O que é sagrado em democracia é que nada é sagrado. Tudo pode ser criticado, contestado, posto em causa nos seus fundamentos - todos os poderes, todos os dogmas, todas as certezas."
Se o humor, a sátira, a crónica e a opinião expressa no espaço público são tantas vezes ofensivos? Claro. Mas para o julgar existem fronteiras legais e também aqui as orientações do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem têm sido claras, entendendo a liberdade de expressão como atitude que exige aceitar (também) as opiniões que "chocam e que inquietam o Estado ou o outro".
O debate à volta dos limites é uma falsa questão - porque em rigor já existem e porque nunca se poderá por decreto definir onde começa e acaba o tão invocado bom senso. Defender a liberdade de expressão é aceitar que todos sem exceção possam exercer esse direito em igualdade de circunstâncias. E acreditar que o seu exercício nos tornará cada vez mais tolerantes e humanos. Com capacidade de nos olharmos ao espelho de forma desassombrada e de nos rirmos de nós mesmos e daquilo que em nós é mais profundo.
Inês Cardoso, aqui
