terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

A LIÇÃO QUE APRENDI COM O PINÓQUIO

Andava no 2.° ano do liceu Alexandre Herculano quando apanhei a minha primeira falta de castigo, a Canto Coral

Duro de ouvido e desafinado, fui desterrado para um canto do anfiteatro, na companhia de colegas desprovidos de sensibilidade musical. O professor explicou que nos arrumava a um canto para não impedirmos o progresso do resto da turma - e instruiu-nos para ficarmos quietos e calados.

Não foi boa a ideia do professor, um tipo pequenino, que usava um fato azul com risca de giz, e equipado com um nariz enorme, que lhe valeu a alcunha de Pinóquio.

Era mais provável que nevasse no Natal em Bissau do que um grupo de rapazolas de 13 anos ficassem de matraca fechada durante os 50 minutos da aula, enquanto os colegas cantavam alegremente o "Lá vamos, cantando e rindo/levados, levados sim/pela voz do som tremendo/das tubas, clamor sem fim".

Uma manhã, enquanto o resto da turma berrava "Frère Jacques, Frère Jacques/Dormez-vous? Dormez-vouz?", sorrateiramente coloquei-me de frente para os pequenos cantores e atrás do professor, imitando os gestos arrebatados com que ele dirigia o coro. A palhaçada não durou muito. O Pinóquio não precisou de retrovisor para adivinhar que algo se passava nas suas costas. Fui posto na rua.

A idiotice do método de acantonar num gueto os diferentes, seja porque são desafinados, mais pobres, menos espertos ou de outra raça ou credo, é a principal lição que extraio deste episódio. Apartar e segregar nunca deram bom resultado.

A sala de aulas é o campo de batalha, em que os profes têm de usar truques para vencerem a guerra de educar uma turma heterogénea. Os calaceiros e malcomportados adoram juntar-se no fundo da sala. Os estudiosos e estudiosas tendem a sentar-se nas carteiras da frente.

O bom professor não aceita esta arrumação e procede a uma mistura hábil, para atenuar a influência perniciosa das más companhias (que não são uma treta inventada pelos nossos pais) e promover o contágio das boas companhias.

Infelizmente, a geografia do mapa da Europa não é tão facilmente manejável como a da sala de aulas, e o destino pregou à Ucrânia a partida de lhe atribuir uma má companhia (a Rússia) como colega de carteira. Não é preciso recuar aos tempos dos czares para achar exemplos de quanto os ucranianos têm sofrido com o vizinho. No início dos anos 30, Stalin matou à fome milhões de camponeses ucranianos, confiscando-lhes os cereais e as reservas de sementes, num bárbaro genocídio que afetou 75% da população.

A Rússia deu ao Mundo Tolstoi, Tchaikovsky e Chagall, mas nunca conseguiu escapar ao triste destino de ser um império sedento de expansão, governado por autocratas que oprimem o seu povo e os vizinhos. O czar Nicolau II, o camarada Stalin e o presidente Putin são três faces da mesma moeda odiosa.

A arrumação da sala europeia feita a seguir à II Guerra Mundial fez checos, húngaros e polacos sofrer por terem sido obrigados a ser colegas de carteira dos russos até a queda do Muro de Berlim os libertar dessa má companhia.

Agora que o czar Putin quer a todo o custo manter a Ucrânia na sua esfera de influência, para evitar que a fronteira com o Ocidente se aproxime de Moscovo, a Europa não pode deixar cair os insurgentes de Kiev.

A UE só faz sentido se for uma farol de democracia, bem-estar e respeito pelos direitos humanos, sempre disposta a abrir as suas portas. As bandeiras azuis com estrelas amarelas que se erguem em Kiev são um tremendo elogio à ideia de Europa e dizem-nos que, apesar das crises, obstáculos e contratempos, estamos no caminho certo, o da construção de uma União cada vez mais ampla, livre, com uma moeda única e livre circulação de pessoas e bens - de Lisboa até Kiev.

Retirada daqui