Os ricos vivem da existência de pobres.
Os poucos muito ricos vivem da
existência de muitos muito pobres. Em 1654, o Padre António Vieira disse-o de
forma frontal e imorredoura: "Não só vos comeis uns aos outros, senão que os
grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal.
Se os pequenos
comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes
comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande."
Esta semana, 360 anos depois do sermão de António Vieira aos peixes, o mesmo
país que o expulsou por ser uma voz incómoda para os poderes instalados tomou
conhecimento de que, em pleno coração da crise que está a condenar vidas em
série ao desespero, as 25 maiores fortunas portuguesas foram valorizadas em 16%
ao longo do último ano. Elas somam atualmente 16,7 mil milhões de euros, 3,3 mil
milhões mais que o ano passado. 25 fortunas valem hoje 10% do produto nacional,
1,6% mais que há um ano. Estes números ensinam-nos três coisas sobre este
momento da vida do país.
A primeira é a de que, entre nós, a riqueza tem uma base ca-da vez mais
especulativa e improdutiva.
Américo Amorim, o homem mais rico de Portugal, tinha perdido a liderança das
fortunas no ano transato.
Pois bem, foi a subida vertiginosa do valor das ações
que detém no Banco Popular, na Galp Energia e na corticeira com o seu nome de
família que fez que a sua riqueza duplicasse num só ano. Soares dos Santos,
Guimarães de Mello e Belmiro de Azevedo, que se seguem no ranking a Américo
Amorim, têm fortunas alicerçadas também na distribuição, na banca e nos
movimentos em mercados financeiros, não na produção ou transformação de
bens.
O segundo ensinamento é o de que no Portugal da crise há milhões que estão a
ser condenados a perder o pouco que têm e há uns poucos que estão a aumentar o
muito que já tinham. Os 3,3 mil milhões acrescentados à riqueza de 25 pessoas em
Portugal num ano mostram à evidência que a pergunta insistente a quem exige um
caminho alternativo à austeridade - "sim, mas onde é que vai buscar o dinheiro?"
- deve ser feita, e cada vez mais, a quem acha que a austeridade é o caminho,
sob a forma de "pois, mas para on-de é que vai o dinheiro?".
O terceiro ensinamento é o de que a riqueza em Portugal está cada vez mais
concentrada, ao mesmo tempo que a pobreza está cada vez mais disseminada. Em
Portugal a pobreza democratiza-se, ao passo que a riqueza se aristocratiza a
cada momento que passa. A história dos 25 que hoje dominam a riqueza do país é
feita de combate à concorrência (e não do seu reforço), de luta por posições
monopolistas (tantas vezes com a cumplicidade do Estado), de fusões e tomadas de
capital - frequentemente acompanhadas de cruzamentos familiares efetivos - tanto
intra como intersetoriais. Não há em Portugal, nunca houve, capitalismo popular,
ele é um embuste.
Na semana em que o Governo aprovou o Orçamento mais agressivo das pessoas de
que há memória no tempo da nossa democracia, ficámos a conhecer o rosto e o nome
de quem está a ganhar mais com esta política. Essa coincidência no tempo
traz-nos de volta a reflexão incómoda do Padre António Vieira: "A diferença que
há entre o pão e os outros comeres é que para a carne há dias de carne, e para o
peixe dias de peixe, e para as frutas diferentes meses do ano; porém, o pão é
comer de todos os dias, que sempre e continuadamente se come: e isto é o que
padecem os pequenos.
São o pão quotidiano dos grandes; e assim como o pão se
come com tudo, assim com tudo e em tudo são comidos os miseráveis pequenos."
José Manuel Pureza, aqui