Se um qualquer erro informático não der cabo da pen, o país assistirá hoje a mais um periódico e doloroso ritual: a entrega na Assembleia da República de um Orçamento do Estado cujas linhas gerais acentuarão a austeridade e concomitante degradação das condições de vida dos portugueses.
Sem uma alternativa credível à aceitação do estatuto de protetorado proposto pelos principais credores internacionais, existe uma saída menos penalizadora para os habitantes do território ainda batizado de Portugal?
Os salamaleques e a chicana política tendem a mascarar o óbvio: a obrigatoriedade de estancar um défice crónico, o qual só se combate através de uma efetiva cura de emagrecimento, especialmente de um Estado gordo e anafado. O diagnóstico está há muito feito e, por isso, a subida do tom contestatário radica menos no remédio e mais na dosagem e métodos de aplicação. Esse é o ponto de divergência.
A catadupa de informação à solta sobre as linhas mestras do Orçamento do Estado de 2014 justificava já, só por si, a turbulência social em curso. E é uma falácia atribuir os cortes previstos aos credores internacionais. Há um número obrigatório no horizonte (4% de défice) mas a "delegacia do protetorado" dispõe da liberdade de decidir as vias para o atingir. Ora é essa escolha de caminhos até ao objetivo a principal responsável pelo não convencimento da população.
Embora de semblante carregado, a maioria dos portugueses estaria na disposição de aceitar sacrifícios e, até, algum empobrecimento, sempre e quando lhe fosse passada uma mensagem exemplar, ou seja, na qual não restassem dúvidas da inexistência de filhos e enteados, consoante a condição social ou económica ou, até, de grupelhos corporativos, partidários e dos chamados poderes ocultos. Todo o contrário da maioria das opções tomadas.
Nas condições atuais, a elaboração de um Orçamento do Estado é um exercício complicado, a exigir articulação incapaz de deixar dúvidas num enunciado básico: o da intocabilidade moral. E este Executivo não foge à regra de anteriores: procede a cortes cegos, sem estratégia compreensível e, em nome da gravidade do momento, usa e abusa do descarte de princípios (valores). Avilta os fracos e evita os fortes.
A palavra "só" é a mais destruidora da credibilidade do Governo. Se o ministro dos Negócios Estrangeiros, Rui Machete, desvaloriza ter mentido quando negou ter possuído ações da SLN - afinal "só" teve 0,01%, disse ele! - o vice-primeiro--ministro, Paulo Portas, amplifica o enunciado disparatado quando, por exemplo, considera um feito atacar "só" 3,5% das pensões de solidariedade!
Ao "só" juntam-se as consecutivas exceções nos cortes e a violação do princípio da confiança. Violentam-se consciências.
É de meter dó.
Retirada daqui