A frase, escrita num simples papel colado na parede do
átrio da escola, despertou-me curiosidade. Fui-me interrogando, depois, sobre o
seu real sentido. Era um miúdo de 12 anos, recém-chegado a uma escola
secundária em plena fase conturbada pós 25 de Abril.
Nos corredores, alunos finalistas saíam em perseguição das colegas de turma, desde o interior das salas de aula, agarrando-as e arrastando-as de novo para dentro, enquanto os professores permaneciam impávidos nas suas secretárias. Uma das minhas professoras, ligada aos defuntos movimentos radicais de esquerda, faltava a mais aulas que às que comparecia, motivada que estaria pelos ideais revolucionários em vez da obrigação de ensinar.
Nos corredores, alunos finalistas saíam em perseguição das colegas de turma, desde o interior das salas de aula, agarrando-as e arrastando-as de novo para dentro, enquanto os professores permaneciam impávidos nas suas secretárias. Uma das minhas professoras, ligada aos defuntos movimentos radicais de esquerda, faltava a mais aulas que às que comparecia, motivada que estaria pelos ideais revolucionários em vez da obrigação de ensinar.
Tínhamos medo de sair do recinto escolar. Os mais velhos
usavam gangas desarranjadas, cabelos e barba selvagem... Perseguiam-nos à
saída, pontapeando imberbes caloiros que corriam sobressaltados à frente de tão
demoníacas figuras. Em redor, construções inacabadas, perdidas no tempo à
espera de financiamento, como o Cine Teatro São Pedro e a Fundação Dionísio
Pinheiro, potenciariam atos marginais que resultavam, dizia-se, da libertinagem
de Abril. A avenida Eugénio Ribeiro era um longo estaleiro a anunciar habitação
citadina na principal artéria da nova urbe, servida então por uma estrada ainda
em terra batida...
Há coisas que nos
despertam atenções, sobre as quais refletimos sem para isso sermos
obrigados, e não sabemos bem porquê. Liberdade é responsabilidade!... Que
raio... A liberdade caíra-nos nas mãos findo décadas de ditadura. Ditadura
política, diziam-nos. Será apenas política?
O povo rejubilava, achando alguns que a liberdade seria
libertinagem. Mas, liberdade devia ser responsabilidade. Quase 40 anos depois
quantos lhe darão sentido?
De repente, penso em
Colónia, cidade/metrópole alemã com um milhão de habitantes. Com a sua rede
de metro infinitamente mais extensa que a do Porto e Lisboa juntas.
Linhas
urbanas e ligações a núcleos urbanos contínuos, como Bona, a 20 km, antiga
capital da Alemanha ocidental até à queda do muro da vergonha. Máquinas de
validação de bilhetes nas estações e no interior das composições. Multas para
infratores até 40 euros.
Chego ao Porto alguns meses depois, aeroporto Sá Carneiro,
metro para o centro da cidade. Máquinas de validação apenas no exterior, nas
estacões, não no interior das composições. Multas até 100 euros para quem não
validar bilhete. A minha companheira de viagem esqueceu-se de o fazer e só deu
por isso após a paragem na primeira estação. Entraram fiscais.
O rosto
avermelhou-se enquanto constatava o esquecimento de quem faz o trajeto uma vez
em muito tempo. Multa pela certa! Perguntei ao senhor fiscal: porque não
máquinas também no interior das carruagens como em Colónia? Porque assim as
pessoas dariam a tempo pela sua presença, validando de imediato os títulos de
transporte. Questionei se não seria essa a sua principal missão. A resposta
ficou num encolher de ombros...
Em Colónia, com tantas estações, tantas entradas e saídas, e
movimento significativamente superior, não me apercebi de fiscalização, muito
menos de utentes incumpridores. Um português, quando cheguei à cidade,
sugerira-me: “O melhor é arriscar e não comprar bilhete... Quando aparecerem os
fiscais já gastou mais em bilhetes que os 40 euros da multa que lhe vão passar”.
O chico espertismo lusitano no máximo da sua afirmação! Liberdade é, afinal,
mesmo, responsabilidade?!
Questiono se a
mensagem perdida numa simples folha de papel, colada na parede de uma
escola, entretanto alvo de avultado investimento de requalificação, não faz
ainda hoje todo o sentido. E se as novas gerações – encurraladas na
impessoalidade de uma escola nova e maior, crescendo em disputa permanente, num
território progressivamente segregado por uma competitividade sem limites mas
onde permanece o fazer por imposição – não deveriam refletir sobre a mensagem
de que ter liberdade é saber usá-la com responsabilidade.
No cumprimento de
regras coletivas, no respeito pelas hierarquias de uma qualquer organização, na
forma criteriosa e madura, sobretudo construtiva, como se pode e deve usar a
liberdade de expressão e de realização...
Questiono se a atual opressão não se evitaria num quadro de
efetiva cidadania, desde o poder eleito ao cidadão comum, de respeito e
cooperação; num cenário de maturação social, resultado do investimento nas
pessoas e no seu enorme potencial. Questiono se, com tal investimento, as
pessoas e a sociedade que elas moldam à sua efetiva competência, não estariam
hoje, quase 40 anos passados sobre Abril da Liberdade, superiormente habilitadas
a construir mais responsavelmente o nosso futuro comum.
Liberdade é responsabilidade? Não será por isso, muito pela
incompreensão da mensagem que tal frase transporta, que estaremos nesta
confusão coletiva?
Augusto Semedo, no 'Região de Águeda' de 3 de Abril de 2013