quinta-feira, 25 de abril de 2013

DISCURSO DA PRESIDENTE DA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA NA ABERTURA SOLENE DA SESSÃO COMEMORATIVA DO XXXIX ANIVERSÁRIO DO 25 DE ABRIL

Sr. Presidente da República,
Sr. Primeiro-Ministro e Senhores membros do Governo,
Sr. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça
Sr. Presidente do Tribunal Constitucional e demais tribunais superiores,
Antigos Presidentes da República,
Sra. Procuradora-Geral da República,
Sr. Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas e demais representantes institucionais das Forças Armadas,
Antigos Presidentes da Assembleia da República,
Sr. Núncio Apostólico, Srs. Embaixadores e representantes do Corpo Diplomático,
Senhores Deputados,
Excelentíssimas autoridades,
Minhas senhoras e meus senhores,

Um dia na vida dos indivíduos e dos povos pode conter o infinito. Assim foi 25 de Abril, o fim de um tempo sombrio, a política com a sua pulsão emancipadora a ganhar o ponto de partida. Em explosão de alegria, a liberdade foi trazida às nossas mãos para que todos nos tornássemos criadores do mundo.

Todos os impulsos libertadores da história concretizam sempre um sonho realista, um sonho de justiça reclamado pela evidência flagrante da realidade. Porque é a intensidade da realidade que torna os sonhos possíveis, é ela que nos confere a coragem da superação, da mudança redentora.

A viragem de Abril é o culminar das muitas pretensões da vida, todas cheias de frustração e dor, da insuportabilidade de um espaço público nulo e do seu consequente deserto de direitos. Nada há de mais inumano do que a escolha impossível. Abril veio contra a negação da escolha política, contra a negação da justiça pública, contra a negação das escolhas individuais também, porque só uma justiça pública lhes pode dar as condições.

De reagir contra esta espécie de “estado de não valor”, onde, como diz Hermann Broch, cabem todos os males, Abril ofereceu-nos a democracia. A democracia como única possibilidade de realização da política, a verdadeira, fazedora da emancipação de todos e de cada um. Com a liberdade nos fazemos senhores de um poder de construir submetido à crítica. Tornamos possível o impossível. Abril é esta teodiceia das possibilidades do humano, a um tempo real e ideal, carregada no poder da escolha, esta teodiceia de um humanismo sem limites, tão bem registada numa das mais belas passagens da literatura, na letra de Saramago, quando diz que “Os homens são anjos nascidos sem asas, é o que há de mais bonito, nascer sem asas e fazê-las crescer”.

Se há uma espécie de metafísica da celebração do 25 de Abril, ela é, sem dúvida, a celebração mesma do espaço público como lugar de emancipação, lugar de conjura para uma justiça maior, por todos construída e para todos.

Decisivamente, é este o espaço público como instância viva da política e da democracia, que traça o abismo entre os tempos sombrios de ontem e os tempos difíceis de hoje. É o espaço público, com a sua política interventiva e criadora.

Porque o que é a política se não isso mesmo, exercício de uma vontade que renuncia ao egoísmo confortável e ao distanciamento snob e que se atreve no desconforto da luz crua dos lugares públicos, para rasgar o horizonte de uma justiça para todos. Uma justiça que a solidariedade particular e avulsa pode ajudar, mas que nunca pode substituir.

Celebramos hoje o espaço público com a sua política, que se recusa a ser lugar banal e oco de uma relação de domínio sem sentido. Celebramo-lo como espaço vital da autonomia do sujeito, onde se manifesta e cumpre a existência de cada um de nós. Porque, como disse Karl Jaspers, existir é agir em comum e comunicar. Celebramos, pois, o espaço público, com as infinitas possibilidades que a liberdade pública é capaz de deixar à felicidade privada.

Por isso mesmo, nestes tempos difíceis e de crise, temos que amar a democracia como nunca. Porque é nas suas regras que colectivamente seguramos os estremecimentos do presente. Temos que amar essas regras contrafactuais e intemporais e ler nelas o código das soluções, a cifra para os novos paradigmas de organização do nosso tempo.

Senhor Presidente, Senhores Deputados,
É este um tempo novo, de um mundo novo e surpreendente, um mundo de interacções feitas pela economia e a tecnologia, tomando a dianteira sobre os ritmos da política. É a sociedade mundial, da comunicação dos povos e do seu desafio do muito por fazer. A ponte entre o universal e o particular, a igualdade entre indivíduos sobre tradições culturais muito diferentes, o confronto ético entre a economia social de mercado e a outra economia, a integração dos Estados para construir uma justiça equitativa entre os cidadãos e os povos. Como diz Hannah Arendt, a solidariedade do género humano só pode ser relevante se estiver associada à responsabilidade política. Coisa que tem já o seu prenúncio na afirmação kantiana de que é preciso escrever a história de um ponto de vista cosmopolita.

E é sempre às bases morais da Democracia que regressamos para enfrentar os novos desafios. Desafios para as muitas e novas realizações do contrato social de acordo com os tempos, desafios da esperança política. Também aqui Abril carregou um projecto moral e cosmopolita, numa espécie de intenção antes do tempo.

Pois, se há uma decifração para a crise, ela está em que a justiça, hoje, pressupõe a partilha política entre os Estados e essa partilha apenas dá os primeiros passos. Os movimentos da sociedade económica vão muito à frente das audácias da sociedade política. Ainda se ensaia por enquanto, e apenas se ensaia, a inteligência cooperativa dos Estados, que é capaz de adaptar as políticas públicas à nova escala do ambiente social.

Entretanto, a crise interpela-nos sobre a consistência do discurso da democracia. Os cidadãos pedem à democracia que ela seja arte da liberdade, mas também arte da felicidade. Perguntam pelos seus resultados nas formas concretas de vida, perguntam pelo seu conseguimento. Decididamente, o teste que é feito à democracia é a justiça que ela é capaz de gerar.

Como está bem de ver no percurso da União Europeia que, enquanto comunidade de sucesso, conviveu muito bem com a decisão política relativamente fechada nos Gabinetes. Agora que é também comunidade de riscos, testa a sua democracia na efervescência dos espaços vitais dos indivíduos e dos grupos e nas vivas pretensões da rua. É sempre às bases do jogo que regressamos para refazer a justiça, é sempre aos seus postulados mais intuitivos e evidentes que regressamos. A vida digna é indissociável da vida livre. A ideia corre o dia-a-dia das pessoas, a inquietação dos Governos, a dor que dói sempre que enfraquecem os direitos nesta sociedade aberta.

Contra o desencanto democrático, todos temos que correr para vencer. Como se cada um de nós carregasse sozinho a esperança do mundo.

Os cidadãos com o seu activismo. Os media, comprometidos que estão com a verdade e os direitos humanos. E, sobretudo, as lideranças políticas. Porque a política é, por natureza, a única acção capaz de uma eficácia universal. A política tem esta capacidade de reprodução das coisas, que lhe permitirá fazer da comunidade humana uma comunidade de comunicação moral. É, aí, no mandato, que se afirma em toda a linha o sentido de serviço, a lembrar-nos, de certo modo, aquela expressão bíblica que diz que o primeiro de todos deverá ser o servo.

E todos podemos mudar o mundo a partir do lugar que ocupamos no mundo, a casa, o trabalho, o tribunal, a escola ou a lei. Afinal, a nossa aventura humana individual não é apenas nossa. É sempre uma aventura que está para além de nós, e é nessa transcendência que encontra o seu sentido. É o prodígio da acção humana, de fazer possível o “infinitamente improvável”.

Senhor Presidente, Senhores Deputados,
Só no espaço moral da democracia é possível traçar a linha entre a sobrevivência e a emancipação, o isolamento e o estar no mundo, a anulação individual e cívica e as condições para a excelência humana.

Por isso, é também em nome do espaço público que é preciso combater a pobreza. A pobreza exclui da sociedade, exclui da participação na sociedade. A pobreza, com os seus muros, atinge a dignidade individual e a universalidade da democracia. Atinge-nos a todos.

E Abril veio como um grito contra todos os muros. Um grito de justiça para todos os lugares onde a vida mora, contra a pobreza, o esquecimento, e a não participação também. Os muros que separam o sentido do nós e o sentido do outro. Contra outros muros ainda: os que separam os Estados à mesa das grandes decisões e impedem o passo em frente para o bem comum universal.

Por tudo isso, Abril foi um grito para além do seu tempo concreto. Um grito que nos desperta uma espécie de memória de futuro, de intenção para os novos espaços públicos, de uma humanidade alargada e mais humana. Sentimos que esse grito nos empurra, que ele faz o combate sagrado desta sala. Que nos desafia para a vontade moral e o conseguimento. Que nos diz que o mal das sociedades está nos seus muros e a justiça consiste em derrubá-los.

Muito obrigada.

Retirada daqui