As reacções à demissão de Miguel Relvas foram, de uma maneira geral, lamentáveis.
Tratou-se de um triste espectáculo. Nunca me congratulei com o facto de alguém cair ao chão.
No dia da demissão, porém, vi muita gente, da esquerda à direita, atropelar-se para lhe ir dar mais um pontapé. Vi comentadores indignados pelo facto de Miguel Relvas não ter explicado as razões da demissão!
Vi pessoas que tinham defendido inflamadamente Sócrates no caso da Universidade Independente a atacarem Relvas sem qualquer peso na consciência.
Nesta questão estou perfeitamente à vontade, pois num caso e noutro disse sempre o mesmo: esses assuntos não mereciam a relevância que se lhes atribuiu. Até porque, quer no caso de Relvas quer no de Sócrates, não houve, que se saiba, qualquer crime. Houve eventuais favores, mas não houve crimes.
Resumamos a história.
Cobertos por Bolonha, Miguel Relvas e centenas de pessoas pediram créditos nas universidades, isto é, pediram equivalência a cadeiras com base nos seus currículos profissionais. As universidades pegaram nos currículos e atribuíram as equivalências que entenderam. Se houve generosidade a mais (e parece que houve, em muitos casos), cabe ao Estado analisar – e aos tribunais julgar. Se isso puser em causa o canudo de alguém, retire-se o canudo. Mas, não sendo preciso licenciatura para ser ministro, o facto de um ministro (ou mesmo um primeiro-ministro) perder o canudo não implica a saída do Governo.
No caso de Relvas, como o ministro da Educação explicou com clareza e serenidade, há outra questão para lá das equivalências: numa cadeira que exigia prova escrita só existe registo de prova oral. Recorde-se que, no caso de Sócrates, também havia um caso semelhante: um exame (de Inglês Técnico) que deveria ter sido realizado na universidade e foi feito aparentemente em casa e enviado por faxe. Enfim, tudo isto são irregularidades – que não abonam a favor das universidades que as praticam, mas também não representam prejuízo para terceiros. Há benefício de alguns mas não há prejuízo de outros.
Sendo assim, não se compreende muito bem a perseguição movida a Relvas. Ele fez mal a alguém? Matou alguém? Prejudicou a quem? No entanto, foi atacado à esquerda e à direita. Comentadores televisivos, editorialistas de jornais, anónimos na net não lhe deram sossego durante meses, chamando-lhe todos os nomes. As perseguições chegaram quase a vias de facto, como no ISCTE, por gente que parecia possuída pelo demónio. Se pudesse, linchava-o. Como explicar tanto ódio?
Dir-se-á que é uma situação normal em democracia. Que ainda recentemente José Sócrates foi alvo de várias campanhas mediáticas – com os casos Freeport, Face Oculta ou Tagus Parque.
Ora, é preciso perceber que as situações não são comparáveis.
Enquanto no caso dos diplomas não houve prejuízo para terceiros, nesses outros casos o prejuízo foi claríssimo.
No Freeport houve a aprovação de uma zona comercial em área protegida, quando o Governo já estava em gestão e a três dias das eleições. No Face Oculta houve uma tentativa de controlo dos media, com o uso de empresas ligadas ao Estado. No Tagus Parque houve um apoio de Figo a Sócrates, em vésperas de eleições, no mesmo dia em que Figo assinou um contrato de publicidade com entidades públicas.
O SOL foi o primeiro a trazer a público os casos Freeport, Face Oculta e Tagus Parque, mas procurou tratá-los jornalisticamente com dignidade, não enveredando pela perseguição pessoal. O seguinte exemplo é elucidativo a esse respeito.
Em pleno caso Freeport, a jornalista Felícia Cabrita escreveu um artigo sobre um suspeito que aparecia no processo instaurado em Inglaterra com o nome de código ‘Pinóquio’. Na chamada na 1.ª página, pus-lhe o título Quem é o Pinóquio?
Sucede que, ao consultar as páginas interiores do jornal que já estavam fechadas, deparei-me com uma pequena notícia sobre um cartaz que a JSD ia colocar nas ruas, no qual se via Sócrates com um grande nariz. E acompanhava-o uma frase aludindo ao facto de ser mentiroso e, tal como Pinóquio, lhe crescer o nariz quando mentia.
Ora, embora se tratasse de uma coincidência, resolvi de imediato retirar este texto e a respectiva imagem.
Nada me obrigava a fazê-lo. Poderia deixar ao critério do leitor relacionar ou não as duas notícias. Mas não me pareceu decente apontar o dedo a Sócrates desta forma enviesada.
Voltando ao caso Relvas, no meio de tantas reacções lamentáveis salvou-se o Governo – que tratou o assunto com seriedade, discrição e sentido de Estado. Fez o que se impunha: promoveu um inquérito e extraiu daí as devidas conclusões. Como eu sempre disse que deveria ser feito. Se há algo nesta história a elogiar, é o Ministério da Educação e o ministro Nuno Crato, que agiram com uma independência e lisura exemplares.
Mas pergunto: no tempo de Sócrates seria possível um inquérito à sua licenciatura feito com esta profundidade? E, se tivesse sido feito, a que conclusões chegaria? E Sócrates permitiria a sua divulgação com a mesma liberdade? Sei que estas perguntas configuram um processo de intenção, mas também sei do que falo.
Relvas justificou a demissão com a falta de «condições anímicas» para continuar. Se o percebo! O que me intriga é o Governo conseguir sobreviver no meio desta selva mediática, com acusações constantes, ataques diários, insultos, manifestações, cantares alentejanos... E tudo porquê? Por estar a cumprir aquilo a que o país se comprometeu com os credores?
Poderia o Governo fazer melhor? Quem sabe? Mas estará alguém em condições de atirar a primeira pedra? Estarão em condições de o fazer os políticos que passaram pelo poder nos últimos anos, que são corresponsáveis pela situação, e que se atropelam nos corredores das TVs para fazerem comentários?
Se sabem como se faz, por que não o fizeram quando estavam no poder? Por que deixaram o país chegar ao que chegou? Será Relvas o culpado disso?
A falta de qualidade humana de muita gente que se manifesta no espaço público revelou-se neste caso em todo o seu esplendor. O Parlamento e as televisões estão hoje repletas de abutres. O azar deles é que alguns abutres de hoje serão amanhã as vítimas.
José António Saraiva, aqui