À mesa lá de casa, as conversas sobre os tempos de miséria em que o meu pai
tinha de partilhar uma sardinha com os irmãos (e não eram poucos...) só vinham à
baila quando, por qualquer motivo, se discutia a abastança que o desenvolvimento
económico nos trouxera.
Não é que hoje consiga alcançar com maior nitidez a rudeza desses dias em que
o meu pai se fez alfaiate para garantir a subsistência da família. Mas hoje
consigo perceber melhor a rigidez que tomava conta da face do meu pai, quando
nos lembrava (a mim e à minha irmã) que era errado dar como adquirido que
aqueles tempos já mais regressariam.
Regressaram. Seguramente (ainda) não com a extensão das décadas de 60 e 70.
Mas regressaram.
O meu pai trabalhava de sol a sol e recebia, em troca, meia dúzia de escudos.
Não era escravidão, mas andava lá perto. Hoje, pululam na Internet os anúncios
de pessoas desesperadas, capazes de trocar o seu trabalho por comida. Não é
escravidão, mas anda lá perto.
Hoje, somam-se factos atrás de factos que, juntos, nos pregam um longo frio
na espinha.
As famílias estão a poupar como nunca na alimentação: as empresas de retalho
vivem a pior crise desde 1974, com falências em catadupa e quebras de vendas
sempre a crescer.
O desemprego segue uma impressionante trajetória ascendente e são já mais de
300 mil as pessoas que não têm emprego nem qualquer subsídio estatal.
A economia afunda bem mais depressa do que podia julgar-se: a queda da
receita fiscal está já muito além do que o Governo previa.
O saldo da Segurança Social deteriora-se, por via do aumento dos subsídios a
pagar e da diminuição das contribuições e quotizações para o sistema.
A teoria do bom aluno provou as suas expectáveis limitações: mesmo fazendo
tudo direitinho, tal e qual a troika nos exigiu, a meta do défice está cada vez
mais longe. Vale o mesmo dizer: novas medidas de austeridade estão cada vez mais
perto. E com elas acentuar-se-ão ainda mais as fragilidades desse crescente
exército de desempregados, de explorados, de marginalizado que campeia pelas
nossas cidades, vilas e aldeias.
Era evitável o regresso aos tempos em que, à mesa, uma sardinha tem de
satisfazer várias bocas? Era. Consumado isto, o que nos deve preocupar agora é
amenizar a extensão do problema. Como? Não sei. E o que mais temo é que seja
verdadeira esta sensação de que quem manda também não saiba.
Retirada daqui