Manuel Clemente, um liberal católico, fez a sua tese de doutoramento sobre um dos grandes liberais católicos do século XIX: Conde de Samodães, Francisco de Azeredo Teixeira de Aguilar (1828-1918). Em Porquê e Para Quê, o bispo do Porto apresenta uma pequena súmula da tese: "Religião e liberdade no Porto oitocentista (ou a componente católica do liberalismo portuense".
É um texto pequenino, mas não deixa de ser fundamental. Tem muitas pistas sobre a história portuguesa, sobre a história do catolicismo português.
Durante toda a vida, Samodães bateu-se contra as intromissões do Estado na "liberdade da Igreja", isto é, defendia a autonomia de organização e apostolado da Igreja face ao regalismo permanente dos governos liberais. Mas isto não transformava Samodães num miguelista ou num miguelista reloaded (integralista).
Devido a este equilíbrio entre liberdade política e liberdade religiosa, típico do liberalismo clássico, os liberais católicos do Porto foram fundamentais para a consolidação do regime constitucional no norte do país (Associação Católica e A Palavra, o jornal do movimento). Samodães & Cia. retirou o pretexto religioso aos legitimistas, que confundiam a reacção iliberal com a causa católica.
No fundo, este liberalismo portuense demonstrou que se podia ser - ao mesmo tempo - devotamente católico e empenhadamente liberal e defensor das instituições representativas. "Pode-se ser liberal e católico sem contradição nem confusão de ideias", dizia Samodães. Este Conde portuense considerava que o regime liberal era mesmo o mais consentâneo com a revelação cristã. Para serem aceitáveis para um católico, as instituições tinham de criar um governo que anulasse a anarquia, mas isso não podia significar despotismo - a negação do "princípio católico da liberdade individual". O regime liberal e representativo era, portanto, a forma mais cristã de controlar o governo necessário.
Todavia, não era fácil fazer esta defesa católica da liberdade política do liberalismo. Na Europa latina, o liberalismo impôs-se contra algumas instituições e práticas anteriores, designadamente o congregacionalismo religioso. E a desconfiança anti-liberal acabou por triunfar entre os católicos portugueses. Entre o liberalismo de Samodães e o autoritarismo de Sardinha e Salazar, a maioria dos católicos enveredou pela segunda linha durante o caos da I República. E esta foi a desgraça do catolicismo português do século XX: confundiu a reacção iliberal com a causa católica, como se autoritarismo e catolicismo fossem a mesma coisa.
A libertação do catolicismo da chantagem integralista e salazarista só começou nos anos 60 com a revista O Tempo e o Modo. Mas isso já são contas de outro rosário.
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