quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

A JUSTIÇA QUE TEMOS: DISCURSO DO PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA NA ABERTURA DO ANO JUDICIAL 2012

Na abertura de um ano judicial importa saber como vai a Justiça e que caminhos se apontam para o futuro.

Sempre que em Portugal se fala da justiça, de imediato se aponta a necessidade de reformas. Ao longo dos muitos anos que tenho como magistrado, assisti à reforma de Códigos, à feitura de leis avulsas, às alterações de Estatutos e de Leis Orgânicas, a modificações da Constituição e a um nunca mais acabar de alterações.

Perguntar-se-á se as reformas dos códigos e outras modificações têm contribuído para uma justiça mais célere e mais transparente.

A resposta é, necessariamente, negativa.

A reforma do Código de Processo Civil feita em 1995 era apontada como uma necessidade urgente para tornar mais célere a justiça cível que constituía na altura, dizia-se, um dos obstáculos ao desenvolvimento da economia do país.

A reforma fez-se e centenas de artigos foram alterados. Estranhamente, veio a concluir-se que os processos passaram a ter uma mais longa duração. A reforma da acção executiva, feita em nome da simplicidade de processos, tornou tudo tão complexo que encheu os tribunais de execuções cíveis como nunca tinha acontecido.

As constantes alterações do Código de Processo Penal e do regime das insolvências, por exemplo, em nada têm contribuído para clarificar, simplificar, acelerar os procedimentos.

Há em Portugal um excesso de reformas, um excesso de leis, uma regulamentação tão abundante de tudo e de nada que esmaga em vez de libertar, complica e tira o poder de iniciativa e de adaptação às realidades em cada momento vividas.

E é importante não esquecer que o Direito existe para resolver os problemas concretos da vivência social quotidiana.

Consideram-se como direitos adquiridos e imutáveis atribuições de competências que hoje o dia a dia mostra deverem ser alteradas, por na prática se revelarem inadequadas. Não se deixa a jurisprudência fixar conceitos, uniformizar procedimentos, criar correntes jurisprudenciais que se imponham por si próprias, tornando mais claro e perceptível o sentido da lei. Pelo contrário, alteram-se leis antes de haver tempo para cimentar as anteriores. Não significa tudo isto que se encerre o capítulo das reformas no universo jurídico português. Significa somente que para se falar de reforma é necessário que seja mesmo uma reforma, uma verdadeira alteração de fundo, da própria ideia subjacente à lei e não pequenas modificações, que por vezes não são mais do que retomar ideias antigas.

Fazer e desfazer leis para passado algum tempo retomar o que se modificou é nefasto para a Justiça. Uma reforma nunca agrada a todos os intervenientes judiciários, tendo em conta os vários interesses em causa. Mas é preciso que o legislador tenha a coragem de esquecer todos esses interesses e desde logo, os seus, para mudar tudo o que se mostrar necessário, a começar pela própria filosofia que preside ao Diploma com o qual se pretende inovar.

E é tempo, penso, de se prestar atenção ao que muitos já afirmaram, ou seja que aquilo que verdadeiramente se questiona no nosso país não são as leis, mas sim a forma como são aplicadas. Portugal vive uma crise que se reflecte, directa ou indirectamente, na justiça. As carências económicas, as situações de exclusão, como é sabido, aumentam a criminalidade. Não só a pequena criminalidade do roubo por esticão ou a pequena burla, mas também a grande criminalidade e a criminalidade violenta. É preciso estar preparado para essa luta, que se advinha mais difícil, não só o Ministério Público, como é evidente, mas também o Ministério Público.

Mas há também uma outra questão que deve preocupar igualmente, não só o Ministério Público, mas também o Ministério Público.

Nas épocas de crise surge com alguma frequência histórica a tendência para afastar valores, esquecê-los temporariamente, afirmando outros valores, que se pretende sejam mais relevantes, atenta a situação existente. É uma tendência perigosa e preocupante. O Ministério Público não pode esquecer os valores constitucionalmente protegidos num Estado de Direito, para defender outros, em nome de invocadas excepções. As únicas excepções a respeitar, designadamente na luta contra o crime, são aquelas que a lei em vigor já prevê. As leis regem para o futuro e deve ser sempre afastada a tentação de legislar para o passado.

O Ministério Público é composto por magistrados que só estão vinculados a critérios de legalidade e objectividade e pela exclusiva sujeição às directivas, ordens e instruções previstas na lei.

Devem assim os Magistrados do Ministério Público respeitar rigorosamente o seu Estatuto, não caindo em facilitismos, que se sabe como começam e nunca se sabe como acabam. Diga-se ainda que é nas épocas de crise que as sociedades espaçadamente atravessam, que uma comunicação social verdadeiramente livre e independente, verdadeiramente livre e independente do poder económico e também do poder político, será uma ajuda preciosa para a transparência da justiça e para a observância rigorosa dos princípios constitucionalmente protegidos.

O maior problema que a justiça em Portugal atravessa é, na minha opinião, e como já repetidamente tenho afirmado, a ligação entre política e justiça. Desde logo pela tendência em resolver problemas políticos através de processos judiciais. A partir do “25 de Abril” a maioria dos políticos relevantes do nosso país passou pela Procuradoria-Geral da República e sem que isso se justificasse, como os tribunais vieram a confirmar posteriormente. Pergunta-se: culpa dos tribunais nestes trinta e sete anos de democracia? Não, culpa de quem quer resolver os problemas políticos em sede que não é a própria.

A separação dos poderes e o rigoroso respeito de cada um deles pelos outros é um dos pilares essenciais da democracia.

As intromissões levarão a uma subversão de valores democráticos há muito consagrados e a uma regressão no tempo, que não se deseja.

É preciso dar à política o que é da política e aos tribunais o que é dos tribunais. Não se pode, por exemplo, atribuir à ineficácia da justiça na punição dos crimes económicos, os problemas da economia do país, como já tenho visto cronistas defender.

Nunca tais crimes foram tão investigados em Portugal como agora.

Os resultados que existem, quer em acusações, quer em prisões, quer em condenações, são superiores aos do passado.

E não é por ser maior a corrupção (em sentido amplo), o que não é verdade, mas tão só porque tudo é investigado. Hoje não há zonas de impunidade para a investigação.

Desporto, políticos, autarcas, empresas, bancos, são investigados como nunca tinham sido. Os resultados não são ainda o que se pretende, mas a sua melhoria dá esperança de maiores êxitos, sendo certo que alguns dos sectores referidos nem sequer eram investigados. E nem se diga que a pequenez de resultados deixa tudo na mesma porque não é verdade. O simples facto de determinada zona ser investigada leva a por fim ao sentimento de impunidade.

Deixem-me perguntar a título de exemplo: alguma vez a fraude fiscal foi averiguada e punida em Portugal como agora? Alguma vez foram recuperados os milhões de euros que agora se recuperam? E alguém acredita, como outrora, que a fraude fiscal é livre e sem problemas?

Acrescente-se que o projecto “Fénix” da iniciativa da Procuradoria-Geral da República e hoje com a colaboração de várias entidades, entre elas a Polícia Judiciária, permitirá, certamente, recuperar importantes activos provenientes de actividades ilícitas.

Importa afirmar de forma inequívoca que todos são iguais perante a lei e se é vulgar ouvir dizer que há uma justiça para pobres e outra para ricos, é urgente que o legislador impeça que isso aconteça.

Estou certo que nenhum magistrado do Ministério Público aceita a distinção entre poderosos e fracos, mas não poderá impedir que as leis favoreçam aqueles que dispõem de mais poder.

Se o sistema em vigor permite essa distinção, então é preciso mudar o sistema.

Senhor Presidente da República

Excelência

Nestes cinco anos como Procurador-Geral da República, foi-me possível constatar que a atenção aparentemente distante que Vossa Excelência dedica à Justiça, como um dos pilares bases do Estado de Direito, é efectivamente uma atenção muito próxima e sentidamente respeitada por todos os intervenientes no processo judiciário.

Mais uma vez insisto naquilo que há muito tempo defendo. O Presidente da República deve ter dois representantes no Conselho Superior do Ministério Público, tal como acontece no Conselho Superior da Magistratura Judicial e no Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

Com essa presença dignifica-se o Ministério Público e afasta-se a tentação de um corporativismo fora de época.

As minhas especiais saudações a Sua Excelência a Senhora Presidente da Assembleia da República, já que é a primeira vez que tenho o gosto e a honra de a saudar nesta casa e nesta cerimónia.

Senhora Ministra da Justiça

Pode Vossa Excelência contar sempre com o esforço e a colaboração da Procuradoria-Geral da República em tudo o que disser respeito à melhoria da Justiça. Certamente, nem sempre concordando com todos os projectos e ideias apresentados pelo Ministério da Justiça, como é próprio de um Estado de Direito e de uma honesta cooperação. Nunca nos podemos esquecer que muitas vezes no universo jurídico existe o choque entre uma teoria que se deve conhecer e uma prática vivida, por vezes não concordante.

Tal como no ano passado não posso deixar de saudar o anterior Ministro da Justiça com quem mantive uma correcta relação institucional.

Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e Senhor Bastonário:

Permitam-me que repita o que aqui afirmei na abertura do ano judicial em 2008, por não existir qualquer razão para alterar o que disse ou inovar o que quer que seja.

Sempre defendi que o diálogo, a colaboração e a aproximação entre todos os intervenientes no processo judiciário são necessários para uma mais harmónica Justiça.

Penso que a intensificação do diálogo entre Magistrados Judiciais, Magistrados do Ministério Público e Advogados contribuirá positivamente para a melhoria do funcionamento da Justiça.

Nesse diálogo pretendido, sinto-me à vontade para afirmar que o Ministério Público tem magistrados de alta qualidade capazes de contribuir de forma eficaz para um melhor relacionamento institucional entre todos, com o que só ganhará o cidadão a quem se destina a Justiça.

Termino com uma saudação para todos os que trabalham neste Supremo Tribunal de Justiça e em especial para aqueles com quem durante anos tive o gosto de conviver.

Obrigado pela atenção.
Lisboa, 31 de Janeiro de 2012

Fernando José Matos Pinto Monteiro
Procurador-Geral da República