quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

A JUSTIÇA QUE TEMOS: DISCURSO DA PRESIDENTE DA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA NA ABERTURA DO ANO JUDICIAL 2012



Senhor Presidente da República,

Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça

Senhora Ministra da Justiça,

Senhor Procurador-Geral da República,

Senhor Bastonário da Ordem dos Advogados,

Senhor Cardeal Patriarca de Lisboa,

Senhor Presidente do Tribunal Constitucional, Senhor Presidente do Supremo Tribunal Administrativo, Senhor Presidente do Tribunal de Contas.

Senhores Vice-Presidentes da Assembleia da República e Senhoras e Senhores Deputados,

Senhoras e senhores,

Neste marco da abertura do Ano judicial, gostaria de abordar o tema inquietante das prisões e, a propósito , pensar em voz alta soluções progressivas como as de uma justiça penal pactuada.

As prisões são assim mesmo. Universos concentracionários do trágico e aparentemente irremediável, longe da opinião pública crítica, dos media, das memórias permanentes do poder. Espécie de lastro de uma ferida medieval na sociedade moderna e republicana, a sua imagem é a de um falhanço colectivo nos níveis gerais de conseguimento da justiça. Uma imagem de desassossego , apenas suportável porque é, em regra, intermitente o nosso olhar sobre elas.

Como no filme de Campanella, “O segredo dos seus olhos “, a ingénua impressão de liberdade que sentimos por contraste, só porque nos situamos do lado de fora dos muros de sombra, em breve se desfaz , ao ver o carcereiro ele mesmo preso ao silêncio e isolamento do encarcerado. A prisão é a imagem errónea de uma fronteira entre a não liberdade de uns e a liberdade de outros , numa comunidade de indivíduos moralmente comprometida.

Mas não deixemos que a emoção ultrapasse o lugar que lhe pertence. Que ela não substitua a razão e a clareza de análise que só argumentativamente é possível alcançar. A primeira tarefa da justiça implica sempre a defesa dos interesses legítimos dos cidadãos que são ou foram vítimas de crimes contra a sua integridade física, patrimonial ou moral. Uma justiça que se esquecesse das vítimas, e da dimensão de retribuição que deve estar contida na pena , teria perdido o contacto com as próprias raízes do fenómeno estadual que lhe dá pleno sentido. Contudo, bem diferente é uma justiça que se deixe contaminar pelo clamor da rua , inspirado pelo medo ou a insegurança. O sistema prisional e a política que o orienta devem resistir ao risco de uma deriva justaliónica, que pode soar popular, sendo certamente populista , e que impede formular e executar as respostas certas e adequadas à própria essência da justiça.

Por isso, a minha chamada de atenção dirige-se para a necessidade de não esquecermos os fundamentos de todos os consensos que foram duramente apreendidos em séculos de luta por um sistema prisional que não ficasse à margem das feições e traços de rosto que a sociedade foi escolhendo para si própria.

As raízes onde mergulha o nosso grande consenso contemporâneo , sobre a construção, aperfeiçoamento e protecção de um Estado de direito, constitucional e republicano são de natureza contratual. Isso significa que a sociedade é uma construção colectiva, viva e em constante processo de mudança.

Um dos maiores avanços do pensamento nos séculos XVII e XVIII deu-se precisamente no sentido de não deixar as prisões de fora do contrato que funda e renova as nossas comunidades de destino. Lembremos as teses de Cesare Beccaria ou de Anselm Feuerbach ou ainda a coragem de Voltaire. A delinquência- sem absolver do dolo individual- resulta da fragilidade da condição humana e da imperfeição do edifício do contrato social, dentro do qual tanto o crime, como o sistema que o visa combater (incluindo as prisões) ocorrem. Basta percorrê-las, a origem social de muitos reclusos, biografias atravessadas por violências, crueldades e abusos, pelo ostracismo gerado na pobreza, pelo esmorecer da esperança, num futuro, cada vez mais incerto.

Temos que recuperar a base moral do contrato no sistema das penas. A prisão não pode nem deve ser o lugar onde esse sentimento de abandono e desesperança se veja definitivamente confirmado. Sempre que possível, o arguido deve ser chamado à dignidade da escolha , a ressocialização preparada logo a partir do processo e da sentença. É, pois, necessário elaborar um direito penal evolutivo, aproveitando a disposição para o progresso contida no coração dos homens . Que passa pela via do contrato. Por uma maior afirmação da justiça concreta.

Não se trata de algo verdadeiramente novo, como todos sabem. Experiências de direito comparado. E desde há muito que as circunstâncias atenuantes, a liberdade condicional, a pena suspensa, a relevância da culpa, o júri, evidenciam esta necessidade de uma justiça que reconhece em todas as situações o valor moral do homem , assinalando a responsabilidade como fundamento e a individualização da pena como o melhor critério .

O modelo da justiça penal pactuada transporta os valores de base do contrato social para o domínio das penas: a igual dignidade a todos reconhecida, a escolha como expressão de autonomia e comprometimento, a síntese conciliadora entre uma ineliminável vertente retributiva, pois que a vítima é parte, e a persistente afirmação do arguido como sujeito, em toda a linha do processo.

É por isso que a justificação da justiça pactuada ou participada não está só na redução da complexidade , na celeridade e economia de meios em processo penal. A sua justificação está , em primeira linha, nos próprios fundamentos da Justiça . A justiça pactuada é ao mesmo tempo um valor e um método.

Senhor Presidente da República, Excelências,

Jehring assinalou à pena um fim social em que o resultado a obter conta bem mais do que o crime cometido. Contra a ideia absurda de uma fixidez de destino de cada ser humano, afirma a crença no sujeito e na sua evolução redentora. O que, de certo modo, reintegra a justiça na história, no sentido da consideração de um itinerário vital do agente, inscrito numa sociedade que , em última análise, a todos responsabiliza. Na verdade, de se afirmar excessivamente abstracta e cega, a justiça ,com a sua lei , ganha uma estranheza que enfraquece a eficiência moral do seu sentido! Aí está a imagem Kafkiana do “homem às portas da Lei “: a lei como o lugar de portas abertas em que nunca se entra!

Não iremos tão longe, à radicalização de Nitzsche, que disse que a verdadeira justiça é aquela que como que se autodestrói no perdão ou de Tolstoi , que disse que “tudo compreender é tudo perdoar”. Existe, como já referi, uma persistente dimensão retributiva ou “taliónica” na Justiça, a vítima, com os seus direitos está lá, no contrato social. Mas é necessário insistir numa justiça redentora, que rejeita a falácia de raciocinar por contraposição e propõe uma síntese conciliadora entre a defesa social e a consideração da individualidade do agente.

O desafio está à vista. O modelo da justiça penal pactuada é , desde logo, suscitado pela frustração que nos vem da justiça penal imposta. Um desafio em toda a linha do processo penal: da suspensão provisória do processo à negociação da pena; dentro e fora dos casos de prisão efectiva ; da determinação da moldura abstracta à da moldura concreta da pena . Sempre, sempre com a afirmação plena e omnipresente de todas as garantias.

Isso exige a tarefa incansável dos agentes judiciários. Mas, sobretudo, exige a tarefa performativa e insubstituível do legislador. Como escreveu Hermann Cohen,” o futuro é o momento da lei”. À lei cabe rasgar o horizonte da corajosa experiência de negociação que dá os primeiros passos nos nossos Tribunais. Governo e Parlamento têm aí um papel decisivo a desempenhar. Na verdade, a justiça pactuada guarda uma dimensão de princípio, que é mais que uma política ou uma estratégia, e que pede, assim, a sua optimização pelo legislador!

Devemos desenvolver uma política das penas e das prisões caracterizada pela serenidade racional, pelo primado dos princípios contratualistas e por uma estratégia segura de reinserção social e cultural do recluso . Devemos fazê-lo por aqueles que hoje se encontram nas prisões. Mas também por todos nós.

Se construirmos uma sociedade de indivíduos mais livres e de corpo inteiro, então poderemos dizer com Ruy Belo que “ onde pomos os pés é Primavera”.!

Lisboa, 31 de Janeiro de 2012

Maria Assunção Esteves
Presidente da Assembleia da República