quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

A JUSTIÇA QUE TEMOS: DISCURSO DA MINISTRA DA JUSTIÇA NA ABERTURA DO ANO JUDICIAL 2012

Sua Excelência o Presidente da República

Senhora Presidente da Assembleia da República

Senhor Presidente da Supremo Tribunal de Justiça

Senhor Presidente do Tribunal Constitucional

Senhor Presidente da Supremo Tribunal Administrativo

Senhor Presidente do Tribunal de Contas

Senhor Cardeal Patriarca

Senhor Procurador Geral da República

Senhor Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas

Senhor Vice-Presidente do Conselho Superior da Magistratura

Senhor Bastonário da Ordem dos Advogados

Minhas Senhoras e meus Senhores

1. As raízes dos nossos conceitos ocidentais da política e do direito elevam a justiça a bem maior, a síntese suprema da racionalidade, a primeira virtude das instituições sociais, como nos lembra John Rawls. A verdade é o núcleo essencial da Justiça. Mas a Justiça não vive sem o símbolo, sem a solenidade, sem o formal no sentido nobre do termo. Esta sessão solene que celebra a Abertura do Ano Judiciário é, precisamente, um exemplo do ritual e do elemento imaginativo que sustentam a Justiça, ainda que a mesma esteja muito para além do símbolo, configurando o ponto óptimo entre a pessoa e a comunidade.

Todos nós, que estamos aqui hoje reunidos sabemos que há um tempo próprio para a Justiça, e que esse tempo próprio tem de ser preservado de modo a que não sucumba na voragem dos tempos modernos, contabilizados ao minuto numa perspectiva de mera racionalidade económica.

A Justiça e o Direito não se podem, em caso algum, reconduzir a uma simplificação grosseira de números nem de balanços contabilísticos, mesmo em tempo de balanço e de votos futuros.

2. A sociedade reclama de todos, órgãos de soberania e parceiros judiciários, um entendimento para que a Justiça seja um meio eficaz de regulação de conflitos e uma ponte sem empecilhos para a regulação social. Dizendo de outra forma, e na formulação de Santo Agostinho, para que a Justiça seja “a virtude que atribui a cada um o que lhe é devido”.

Sabemos todos, porque os diagnósticos estão feitos há muito, onde estão os constrangimentos do sistema. E intuímos todos que as reformas da Justiça só podem ser implementadas num ambiente de concertação estratégica, de boa fé recíproca e de permanente e franco diálogo.

A exigência para uma cidadania responsável reclama a todos e a cada um de nós que saibamos evitar a tentação de exercícios autistas, assentes em lógicas egocêntricas e despidas da consideração do interesse geral.

3. Servir a cidadania, em especial num tempo de emergência social e económica como aquele que atravessamos, é ter a capacidade de olhar para o todo e não apenas para uma das suas partes. É ter a capacidade de abdicar de interesses sectoriais ou corporativos em detrimento de um interesse maior, o da sociedade, o de cada ser humano, em sentido próprio. É saber usar a crítica, construtivamente, no sentido da mudança, com propostas alternativas e não como mera arma de arremesso.

4. Ora um dos interesses maiores que a sociedade reclama é, justamente, o de Portugal ter um sistema de Justiça mais célere, mais eficaz e mais justo. Mudar o sistema de justiça, corrigindo as suas disfuncionalidades, é seguramente um caminho necessário, um contributo significativo que a todos é exigido, para que em Portugal se viva melhor.

5. O País está a atravessar uma fase dolorosa da sua existência. Vivemos um momento de pesadas dificuldades, assente num maior empobrecimento, na diminuição do poder de compra das famílias, no aumento da litigiosidade e das disputas. Como observou Ortega y Gasset, a nossa civilização sabe que os seus princípios abrem falência e por isso duvida de si própria. Mas, como também lembra o Filósofo espanhol, ainda nenhuma civilização sucumbiu, de morte plena, a um ataque de dúvida. Este é, pois, o momento, como muitos outros ao longo da nossa História, em que a desventura dará lugar ao reerguer, à reconstrução, à afirmação da nossa identidade.

Não temos o direito à descrença. Não nos pode ser permitido baixar os braços e deixar de acreditar. É proibido deixar de acreditar. Temos, todos, de lutar por uma sociedade que tenha capacidade para promover a justiça e eliminar a injustiça. Por uma sociedade que tenha leis mais claras e mais simples. Por uma sociedade onde os tribunais e todos os profissionais forenses funcionem de forma mais racional e eficaz.

Temos, todos, de colaborar neste enorme esforço, mas tendo sempre em mente que as profissões jurídicas não estão ao serviço de si próprias, mas sim dos cidadãos. Ou seja da sociedade.

6. Não obstante os cortes significativos no orçamento do Ministério da Justiça, e da enorme dívida que encontramos na data de tomada de posse do Governo, acreditamos que é possível implementar um programa reformista para a justiça, equilibrado, participado e inovador.

Para o fazermos, temos de ser criativos. Porque nem para tudo é necessário dinheiro. Mas, simultaneamente temos de ser humildes, de modo a promover as reformas necessárias, sempre em cooperação com todas as profissões jurídicas, num clima de grande lealdade institucional e de concertação estratégica, como aquele que se tem verificado.

7. Vivemos, aliás, um momento único da nossa democracia, de grande coincidência de posturas institucionais. A prova desse sentido positivo e de responsabilidade que tem pautado as relações institucionais pode colher-se na leitura das importantes conclusões dos mais recentes congressos profissionais, em especial os da Ordem dos Advogados, da Associação Sindical dos Juízes, do Sindicato dos Funcionários Judiciais, da Ordem dos Notários e da Câmara dos Solicitadores, ou das relevantes contribuições que nos foram entregues pelo Sindicato dos Magistrados do Ministério Público.

De evidenciar as relevantes contribuições já recebidas do Conselho Superior da Magistratura, do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais e do Conselho Superior do Ministério Público, com quem teremos de reforçar e aprofundar o caminho da cooperação estratégica.

Em todos os contributos recebidos estão vertidas propostas muito importantes, e, em grande parte, coincidentes com aquelas que constam do programa do Governo e do projecto reformista do Ministério da Justiça.

8. Não estaremos sempre de acordo. Mal seria, até que isso acontecesse. Mas do Ministério da Justiça podem todos contar, sempre, com uma atitude aberta, de promoção do diálogo e do entendimento. Não precisamos de fazer revoluções, que, por natureza, são geradoras de rupturas dolorosas. Mas é possível, em conjunto, encetarmos reformas estruturantes para que se consiga o necessário ponto de equilíbrio entre o que a sociedade reclama e o que nos é permitido pela situação de constrangimento económico em que actualmente vivemos.

Senhor Presidente da República,

Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça

Excelências,

9. Nos cerca de sete meses que leva de funções, o Governo concretizou já um conjunto importante de medidas. A primeira que gostaria de evidenciar é a nova Lei de Arbitragem Voluntária (a Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro), que adopta a lei modelo da UNCITRAL e que nos permitirá acolher arbitragens internacionais. Esta iniciativa introduz competitividade em Portugal, uma vez que adopta uma lei que é comum a muitos países e que a comunidade da arbitragem reconhece.

A legislação aprovada não deixará de ter especial relevância no âmbito das nossas relações económicas, em particular com os Países da CPLP. A este propósito, é importante vincar que é a nossa firme aposta manter e incrementar o espaço da Justiça na lusofonia. E, neste âmbito específico da CPLP, onde a geografia dos interesses é diversa mas, simultaneamente, próxima, é propósito de Portugal propor e dinamizar a criação de um Tribunal Arbitral.

10. De importância muito significativa para o funcionamento dos Tribunais, é a Lei, também já aprovada pela Assembleia da República e que em breve será publicada, que tem como objecto a alteração ao Regulamento das Custas Processuais. Para além das alterações de fundo, a padronização do regime de custas judiciais reveste-se de uma enorme importância no funcionamento dos tribunais. No passado, a opção do legislador foi sempre a de determinar que, quando o regime de custas era alterado (e desde de 1996 foi alterado 15 vezes), tais alterações apenas se aplicavam aos novos processos, mantendo-se as regras antigas a serem aplicadas aos restantes processos. Esta opção levou à multiplicação dos regimes de custas que, num mesmo dia e num mesmo tribunal, pudessem ser aplicados, e é um bom exemplo de como sucessivas alterações legislativas contribuem muitas vezes para complexificar os procedimentos, levando a que a simples identificação do regime aplicável seja uma tarefa altamente consumidora de tempo. Daí que determinar a aplicação das mesmas regras a todos os processos tornará, por si só, o regime de custas mais simples e potencialmente mais eficiente, simplificando o trabalho daqueles que diariamente o aplicam nos tribunais e, ao mesmo tempo, tornando o regime mais compreensível para os cidadãos e empresas que recorrem à justiça, com ganhos evidentes de agilização, celeridade e transparência dos processos judiciais.

12. Com o propósito de reforçar o acesso a uma justiça de proximidade, o regime jurídico dos Julgados de Paz está em processo de revisão, tendo em vista a introdução dos ajustamentos que se afigurem necessários à célere e eficiente resolução da pequena conflitualidade. Uma primeira versão da proposta de lei que altera este regime foi elaborada, enviada para discussão pública, prevendo-se a respectiva aprovação pelo Governo até ao final do primeiro trimestre de 2012.

Ao mesmo tempo, executando o compromisso assumido no Programa do Governo, está a ser desenvolvido um estudo detalhado de avaliação do funcionamento dos Julgados de Paz já instalados, com o propósito de aferir a sua eficácia prática e as dificuldades com que se debatem.

13. Está, também, em fase de conclusão o processo de elaboração da proposta de lei que aprova o regime da Mediação Pública, já enviada, também, para audição dos parceiros judiciários. Mas não deixaremos de cuidar e regular, em paralelo, da mediação privada.

14. Está, ainda, aprovada pela Assembleia da República, na generalidade, uma importante alteração ao Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, que visa criar as condições regulatórias adequadas para permitir a recuperação das empresas ainda aptas a prosseguir a sua actividade, bem como para assegurar a efectiva e rápida satisfação dos credores de empresas declaradas insolventes. Esta iniciativa procura, pois, criar, sobretudo através do processo especial de revitalização que prevê um mecanismo célere e eficaz de recuperação de todos aqueles que ainda se encontram em condições de dar um contributo válido para o robustecimento do tecido económico, preservando-se a manutenção do emprego.

15. Particular atenção está, ainda, a ser dada à acção executiva, sendo intenção firme do Governo reduzir, significativamente, as pendências cíveis e criar as condições para que os processos se concluam em tempo útil e razoável, dando adequada resposta às expectativas, não só sociais, como económicas.

Assim, sem prejuízo da reforma da acção executiva de que falarei mais à frente, e com o propósito de assegurar uma satisfação tão rápida quanto possível dos créditos devidos e não pagos e prosseguindo um esforço de simplificação e agilização do processo executivo, o Ministério da Justiça já procedeu à alteração da Portaria n.º 331-B/2009, de 30 de Março. Tal alteração vai permitir uma fiscalização mais eficaz e uma responsabilização mais célere em caso de irregularidades, ao estabelecer um conjunto de regras relativas aos meios de pagamento a utilizar pelo agente de execução, das quais se destaca a indicação do número de identificação bancária, bem como a utilização de referência multibanco ou documento único de cobrança no âmbito de cada processo judicial.

Como decorrência desta alteração, os pagamentos ao exequente serão mais expeditos e, ao mesmo tempo, será mais fácil verificar as transferências efectuadas pelo agente de execução, o que foi feito em perfeita articulação com a Câmara dos Solicitadores.

16. Ainda no âmbito da reforma da acção executiva, o Ministério da Justiça constituiu um grupo de trabalho interdepartamental que visa identificar as acções, administrativas ou de outra natureza, que importa adoptar para que os processos executivos pendentes sejam objecto de rápida resolução. Espera-se, igualmente, que do trabalho deste Grupo, que integra representantes do Conselho Superior da Magistratura, da Câmara dos Solicitadores e da Comissão para a Eficácia das Execuções, resultem as bases para uma actuação planeada que sustente uma redução regular da pendência processual.

17. O Ministério da Justiça vai colocar em audições públicas, muito em breve, um proposta intercalar de revisão dos Códigos Penal e de Processo Penal, visando resolver situações pontuais há muito identificadas. Nesta matéria quero deixar claro que a prescrição deixará de operar a partir da condenação em primeira instância como sucede em outros Sistemas Europeus; que será eliminada a aclaração, a qual utilizada em todas as instâncias, permite que existam sete recursos materialmente falando; que o flagrante delito será julgado de imediato, que a mediação penal será incentivada para situações em que a carência foi o móbil da actividade ilícita. Em suma, poremos termo a expedientes dilatórios que fazem uma justiça para pobres e outra para ricos.

18. A falta de meios materiais não será um óbice ao combate à criminalidade económica e financeira. Por isso estão em elaboração protocolos com Instituições que disponibilizarão o seu saber e experiência, designadamente peritos, neste combate a quem se julgou ou julga impune.

Senhor Presidente da República,

Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça

Excelências,

19. Deixo para o fim a referência a uma das mais importantes iniciativas em curso no Ministério da Justiça que é, sem desprimor pelas restantes, a reforma judiciária, sobre a qual importará fazer uma síntese de enquadramento, e que assenta em três pilares essenciais:

(i) A revisão do Código de Processo Civil,

(ii) O Plano de Acção para a Justiça na Sociedade de Informação, e

(iii) A reorganização do Mapa Judiciário.

20. A Reforma do Código de Processo Civil, foi entregue ao Governo em finais de Dezembro e está em fase de consultas aos parceiros judiciários. No projecto preparado no seio de uma Comissão de Ilustríssimos profissionais, todos com experiência do foro e todos com experiência académica e/ou universitária, é dada primazia à substância sobre a forma e à simplificação sobre a complexidade. A proposta apresentada sugere uma maior responsabilização de todos os intervenientes processuais, consagrando uma maior disciplina na própria tramitação do processo, obviando à prática de actos inúteis com vista à obtenção de uma melhor decisão de mérito. Em nome da credibilização da justiça eliminam-se, na prática, as situações de adiamento da audiência de julgamento, o que ocorrerá, em princípio, apenas nos casos de justo impedimento.

21. Para alcançar os objectivos referidos, o projecto contempla uma forte simplificação processual o que implica a eliminação, por exemplo, do processo sumaríssimo. O juiz passará a dirigir activamente o processo, determinando a adopção dos mecanismos de simplificação e agilização processual, com a previsão, após debate com os advogados, do número de sessões e designação das respectivas datas. Desta forma cria-se uma maior disciplina para todos os parceiros judiciários, evitando-se a comparência das testemunhas em tribunal quando se preveja que não sejam ouvidas. Com o objectivo de simplificar o processo, as partes podem apenas alegar os factos essenciais, evitando-se, por esta via, a prolixidade das peças processuais.

22. Já no âmbito da acção executiva, reforça-se a imparcialidade e autonomia do agente de execução e sugere-se a supressão de alguns actos processuais. A execução deve ser tramitada na própria acção declarativa sempre que o título seja uma sentença judicial. Suprime-se, desta forma, mais um acto processual: a instauração de nova acção para poder tornar efectiva decisão judicial anterior.

O projecto procede, ainda, à simplificação dos procedimentos tendentes a eliminar do sistema as execuções inviáveis o que contribuirá significativamente para a diminuição das pendências processuais. Preconizase a fixação de um limite temporal relativamente curto para a identificação de bens penhoráveis. Findo esse prazo, sem que tenham sido encontrados bens penhoráveis, a execução extingue-se.

23. Esta será a reforma mais profunda no âmbito do Processo Civil desde 1939, data em que entrou em vigor o Código de Processo Civil do Professor Alberto dos Reis.

24. Outro pilar da reforma judiciária é o Plano de Acção para a Justiça na Sociedade de Informação. Trata-se de um projecto ambicioso mas, simultaneamente, realista. Destaco duas componentes desse Plano, que é mais vasto na sua formulação. Desde logo o objectivo de se estabelecerem as bases para um sistema de informatização da gestão processual em todas as jurisdições, de alta segurança e com graus diferenciados de acesso, no respeito do princípio da independência da justiça.

Um segundo eixo importante do Plano de Acção é a criação do Portal da Justiça, que funcionará como meio de relacionamento dos cidadãos com o sistema de justiça e incluirá um conjunto de outras funcionalidades destinadas às diversas profissões jurídicas e, nomeadamente, um centro de formação à distância, cujo projecto está a ser liderado pelo Centro de Formação de Magistrados.

25. Uma alusão final ao Ensaio sobre o novíssimo Mapa Judiciário, que já começou a ser notícia a partir de alguns chavões talvez mais apetecíveis, e mesmo antes de estarem apreendidos os conceitos e as propostas da reforma (trata-se de um documento de mais de 300 páginas, disponibilizado na passada sexta-feira).

Quero deixar inequivocamente expresso que esta reforma não é uma agressão contra o poder local, os cidadãos ou a cidadania. E quero também afirmar que esta reforma, que prima pela simplicidade, pela agilização e pela racionalidade, não é uma imposição da Troika. Antes pelo contrário: mercê de um aturado trabalho com a Troika, o Ministério da Justiça conseguiu alterar substancialmente as medidas que constavam do Memorando relacionadas com a reforma do processo civil e a estrutura dos Tribunais. Conseguiu, nomeadamente, que fosse entendido que as NUT´s são conceitos operacionais para fins estatísticos que nada têm a ver com a realidade administrativa e sociológica dos portugueses. E que a reforma do processo civil não podia ser dissociada da reforma da organização judiciária.

Naturalmente que a adesão da Troika ao novo paradigma de mapa judiciário que lhe foi apresentado pelo Ministério da Justiça, implicava a reponderação dos seus prazos de implementação e da redefinição das medidas do compromisso assumido por Portugal.

23. Não vou repetir os pressupostos que conduziram à proposta que na sexta feira foi enviada a todos os parceiros judiciários e a um conjunto alargado de entidades. Esse documento pode ser obtido na íntegra no Portal do Governo. Mas vale a pena deter-me, nesta ocasião, em dois pontos que foram mais ampliados publicamente: um deles é a alegada dispensa de um número elevado de magistrados e funcionários, ou a sua condução à condição de itinerantes. O outro, o elevado número de tribunais cujo encerramento se discute, e os critérios subjacentes a tais propostas de encerramento.

24. Quanto à questão dos recursos humanos afectos à Justiça, a proposta em cima da mesa é clara: urge definir as necessidades separando aquilo que resulta do movimento normal de um tribunal, daquela que resulta de situações patológicas relacionadas com os processos pendentes em atraso. Estima-se que para dar resposta às necessidades regulares dos tribunais de 1ª Instância, organizados como ora se propõe, seja necessário um total de cerca de 1.000 magistrados judiciais, de 1.200 magistrados do Ministério Público e de 7.000 oficiais de Justiça. Daqui resultaria ser possível afectar ao tratamento dos processos pendentes em atraso cerca de 280 magistrados judiciais, 80 magistrados do Ministério Público e 350 oficiais de Justiça (número este – de oficiais de justiça - que se admite não seja ainda suficiente, até porque se tem registado um número elevado de aposentações). Não se trata de dispensar ninguém nem de deslocar ninguém.

25. O Ministério da Justiça está a estudar a melhor forma de formalizar estruturas de tratamento autonomizado das pendências processuais em atraso, que seriam constituídas por magistrados, acompanhados por equipas de funcionários, com a função específica de praticar actos pré-determinados, fosse a realização de julgamentos em processos que se encontrassem nessa fase, fosse da prática de outros actos judiciais.

Os magistrados e funcionários seriam seleccionados de acordo com as preferências apresentadas, e as equipas de recuperação estarão sedeadas, em princípio, na sede da nova comarca (distrital), e só actuarão no âmbito territorial da comarca e sempre com respeito da total salvaguarda da valorização da independência do Poder Judicial e da Autonomia do MP. Esta concepção de mobilidade nada tem a ver com a itinerância e nem sempre fará apelo à mobilidade física dos magistrados e dos funcionários e sempre que ocorrer será dentro dos limites fixados na lei.

Estas equipas, cuja gestão ficaria a cargo do Conselho Superior da Magistratura, da Procuradoria-Geral da República e da Direcção-Geral de Administração da Justiça, actuariam a pedido das administrações dos tribunais distritais, competindo às entidades gestoras definir as prioridades de intervenção.

26. Não se pense, porém, que se está apenas a convocar a mobilidade física dos agentes da justiça: a esta reorganização dos recursos humanos está subjacente o alargamento (geográfico e organizativo) do tribunal e o esbatimento das estruturas “secções de processos”, que se estende mesmo para lá dos espaços físicos que albergam os tribunais, como se apresenta no documento levado ao conhecimento público. Ou seja, também os processos poderão ser tramitados, em fases significativas, sem a necessária deslocação dos magistrados e funcionários que neles trabalham.

27. Ao propor-se que os tribunais sejam unificados numa estrutura organizativa única por distrito, atinge-se também por esta via uma maior mobilidade na afetação de recursos, reconhecidamente apontada como um entrave à melhoria da resposta do sistema judicial. Esta alteração estrutural na organização do tribunal rompe com o tradicional isolamento de cada pequena estrutura judiciária, que passa a integrar-se numa estrutura mais ampla, presidida por um juiz que é muito mais do que o tradicional juiz presidente, o que obrigará a uma reformulação do papel do próprio juiz do pequeno tribunal.

Contudo, se ao esbatimento e alargamento de estruturas não corresponder maior possibilidade real de reafectação de processos em determinadas fases ou momentos, perde-se parte da vantagem que tais alterações almejam.

28. Em todo o caso, a promessa de melhoria no funcionamento do sistema no seu todo – e, por esta via, também da parcela da sua legitimação própria que lhe advém da forma como desempenha as suas funções instrumentais – justifica que se pondere a melhor opção para garantir, a um tempo, quer o que as regras de distribuição associadas ao princípio do juiz natural procuram assegurar (garantir a imparcialidade e uma carga equilibrada para cada magistrado), quer o que a maior mobilidade representa.

29. Quanto aos receios avançados devido à forma como foram calculados os recursos humanos necessários, esclarece-se que se atendeu ao volume de processos entrados, por espécie de processo, avaliado de acordo com os Valores de Referência Processual (VRP). Estes Valores foram recentemente revistos pela Direcção-Geral da Administração da Justiça, em conformidade com a análise que o Conselho Superior da Magistratura desenvolveu sobre os mesmos, numa proveitosa troca de saberes.

30. A actual organização geográfica judicial do território nacional não reflecte as potencialidades que os novos meios de comunicação e a tramitação electrónica, bem como as alterações verificadas na população nacional, permitem ou aconselham.

Em qualquer caso, há evidentemente mais aspectos a ponderar quando se aborda a matéria do encerramento de tribunais, pois cruzam-se, neste domínio, a perspectiva da cidadania e a perspectiva da eficiência do sistema judicial no seu todo.

Note-se, porém, que também se promove a cidadania quando se permite que a procura mais concentrada tenha resposta em tempo mais adequado, ou quando se promove uma maior racionalidade, servindo um número mais alargado de cidadãos.

31. Sublinha-se que, sendo esta uma questão a que se tem de dar a melhor resposta possível (ponderando em cada momento os interesses em presença, entre os quais não pode deixar de se sublinhar a imperiosa necessidade de racionalizar a utilização dos recursos públicos, para o bem de todos), está aberta a discussão de serem encontradas formas de não afastar demasiado a justiça da proximidade, seja por um eventual alargamento da rede de julgados de paz, seja pela criação de estruturas simplificadas, equivalentes aos Postos de atendimento ao Cidadão, que permitam a satisfação parcial das necessidades dos cidadãos que se dirigem aos tribunais.

Procurou-se, em qualquer caso, firmar critérios objectivos para ponderação do encerramento de tribunais, por forma a permitir uma avaliação clara dos motivos de oposição que seguramente serão avançados ao longo de um processo que se quer transparente.

32. Como já tem sido divulgado, os critérios estabelecidos foram essencialmente seis:

(1) Volume processual subsistente expectável após reorganização ser inferior à média de cerca de 250 processos entrados por ano no triénio de 2008 a 2010: porque deve haver um movimento mínimo, que afinal traduz as necessidades da população local, que justifica os recursos públicos a afectar à sua satisfação (recursos humanos e materiais). Note-se que já hoje não há tribunais instalados em todos os municípios;

(2) Distância entre o tribunal a encerrar e aquele que vai receber o processo passível de ser percorrida em tempo inferior a cerca de 1 hora: nesta medida, situações em que o tempo exigível para deslocação ao tribunal seja demasiado elevado impedem o seu encerramento, mesmo que o volume processual seja diminuto;

(3) Qualidade das instalações bem como a circunstância de serem propriedade do Ministério da Justiça ou arrendadas: porque no momento actual têm de ser conjugados esforços que a um tempo permitam a melhor prestação de serviços com diminuição da despesa pública;

(4) Evolução da população da zona de acordo com o Censos 2011: o país acentuou o padrão de litoralização da década anterior e reforçou o movimento de concentração populacional junto das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto;

(5) Oferta em meios alternativos de resolução de litígios: porque se reconhece a bondade de manter proximidade dos serviços com o cidadão;

(6) Serviços públicos centrais existentes na localidade e existência, ou possibilidade de instalação, de postos de atendimento ao cidadão: pela possibilidade de criação de novas estruturas, utilizando recursos já instalados, que permitam uma resposta parcial às necessidades da população, seja para consulta informática de processos, entrega em mão de documentos ou prestação de informações

Senhor Presidente da República,

Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça

Excelências,

31. Se a Justiça tem o seu momento, também é verdade que tem o seu lugar. E a prova-lo está o Salão Nobre deste Supremo Tribunal de Justiça onde se realiza esta Sessão Solene, que é um dos espaços assumidos na afirmação da voz da Justiça. Um outro espaço tradicional, reconhecido por todos, é o Tribunal da Boa Hora. O Ministério da Justiça tem já um acordo de princípio com a Câmara Municipal de Lisboa no sentido de, muito em breve, se formalizar o acordo de entrega da Boa Hora, devolvendo-se à Justiça esse lugar simbólico para tantas e tantas gerações de profissionais. A restituição da Boa Hora é, pois, um acto necessário como também uma manifestação de cidadania, por todos reconhecida.

32. Já vai longa esta minha intervenção e é tempo de terminar. Atravessamos um tempo em que as dificuldades são muitas e imensas. Mas, por isso mesmo, sentimo-nos estimulados e na obrigação de fazer mais e melhor. Chegámos a um ponto, Excelências, em que o único remédio é agir, actuar em todas as ordens. Vamos, pois, a isso, porque nenhum de nós se pode eximir dessa responsabilidade.

Como nos lembra Adam Ferguson, “a boa ordem dos homens na sociedade é estarem colocados onde estão devidamente qualificados para agirem… Quando procuramos na sociedade a ordem da mera inacção e tranquilidade, esquecemos a natureza do nosso objectivo e encontramos a ordem dos escravos, não a dos homens livres.”

Lisboa, 31 de Janeiro de 2012

Paula Teixeira da Cruz
Ministra da Justiça