Vamos aceitar uma premissa inaceitável: que a escola serve para preparar trabalhadores.
Inaceitável porque isso transforma os cidadãos em mera mão de obra e as suas crias em máquinas de produção em potência. A escola serve para dar a todos os cidadãos, independentemente da sua origem social e cultural, igualdade de oportunidades. Não apenas no trabalho, mas em todos os domínios da sua vida.
A escola serve para transmitir conhecimentos de geração para geração, transmitir valores e incentivar o sentido critico de todos. Pelo menos a escola pública. Pelo menos numa sociedade democrática e livre. Mas aceitemos, por uns minutos, a ideia de que não passamos de produtores de bens e serviços. Mesmo assim, a revisão curricular - nenhum governo se considera no ativo sem fazer uma - preparada por Nuno Crato vai no mau caminho.
Vai no mau caminho mas não é surpreendente. Só quem não acompanhou os escritos de Nuno Crato - que, na sua imaginação, pensa que a escola portuguesa está dominada pelas teorias da "Escola Moderna" quando, na realidade, é uma escola tradicional e conservadora - não sabe que, para ele, a escola só serve para ensinar a "escrever e contar". Para isso servia a escola do Estado Novo que, ao contrário do que muitos gostam de pensar, não preparava nem cidadãos preocupados nem trabalhadores competentes. Isto, apesar dos alunos com maiores dificuldades financeiras e culturais estarem, em grande parte, excluídos dos seus níveis mais avançados.
Que fique claro: considero o domínio da língua materna, da história, da geografia e da matemática - assim como da história do pensamento (a filosofia) e de uma ou duas línguas estrangeiras - instrumentos fundamentais para, ao longo da vida, pensar, adquirir conhecimentos e aplicá-los a novas realidades. Mas não chega. Assim de repente, recordo-me de pelo menos mais quatro capacidades indispensáveis: o sentido critico, a criatividade, o raciocínio abstrato (para o qual a matemática é importante mas não chega) e a capacidade de argumentação - incluindo a retórica e a qualidade da expressão oral, que, ao contrário do que acontece na cultura anglo-saxónica, é desprezada na nossa escola em detrimento da escrita como tão bem se nota na qualidade média das aulas ministradas. Sem elas, seremos meros executores e burocratas incapazes de continuar a aprender.
Sei que um País que andou a empinar linhas de ferro e rios despreza a ideia de que a escola serve para mais do que adquirir conhecimentos. Só que o que é verdade hoje não o é amanhã. Já a capacidade de aprender e criar não se desatualiza. Mais do que conhecimentos, a escola tem de nos dar ferramentas (estas não dispensam conteúdo, como é evidente).
Quais são, então, as alterações curriculares do ministro Crato? A primeira: desvalorização da Educação Visual e Tecnológica e redução da carga horária de Educação Musical, que só existe no segundo ciclo. Isto quando não existe mais nenhuma disciplina artística. A ideia de que a criatividade é dispensável no ensino é típica da corrente ideológica em que se engaja o ministro Crato. Mas mesmo do ponto de vista estreito da preparação para o mundo do trabalho é de tal forma vesga que espanta a naturalidade com que é aceite. Quando se sabe que só conseguiremos ser competitivos no exterior se acrescentarmos valor ao que produzimos, que esse valor depende do design ou da inovação tecnológica e que sem criatividade resta-nos o salário baixo para vender barato o que não presta, esta é uma escolha coerente com todas as restantes que este governo tem tomado noutros ministérios: os cidadãos são força bruta, os trabalhadores mão de obra intensiva, os nossos concorrentes são os países pobres com sistemas de ensino subdesenvolvidos. O resultado será o que se imagina: o do passado.
O fim da Formação Cívica bate certo com tudo o resto. A escola não forma cidadãos, forma amanuenses. E nada como cidadãos ignorantes dos seus direitos e deveres para continuarem a aceitar tudo de braços cruzados. Deve deixar de ser uma salada de frutas onde tudo cabe? Deve. Mas tem de existir. O fim do estudo acompanhado, que, melhorado onde não é bem utilizado, seria uma excelente forma de não deixar ninguém de fora da progressão escolar e, como aconselhou o Conselho Nacional de Educação, contribuir para que os alunos (sobretudo os que não são acompanhados em casa) ganhem métodos de estudo.
Para deixarem a sua marca, os autarcas fazem rotundas e os ministros da educação reformas curriculares. Nuno Crato não quer fugir à regra. E a sua reforma dá um sinal do que ele espera da escola: meninos que saibam ler e escrever e nada mais. Soa bem ao populismo antipedagógico que se instalou no senso comum. É um desastre para o nosso futuro. Como saberá quem conheça os melhores sistemas de ensino da Europa. Ficaremos, também aqui, para trás.
Daniel Oliveira, aqui