Sacana que é sacana tem sempre uma desculpa do arco-da-velha para o seu crime.
Zé Pedro não a tem. Sacana que é sacana é gente da boa e dobra-se perante o juiz. Zé Pedro está-se a marimbar.
Não fosse a sua postura de basbaque e, bem vistas as coisas, Zé Pedro nem devia ser um sacana.
José Pedro, 35 anos, técnico de som e um curso de Antropologia deixado a meio, não foi a tempo de aprender que a persistência é própria do homem, mas tem limites, e que, sem eles, a persistência pode acabar em tragédia. Ou, neste caso, numa sucessão de tragédias.
Em julgamento, o Zé Pedro, casaco três vezes maior que ele e barbicha a cair do queixo em V, começa por se recusar a prestar declarações, com o ar sorumbático de quem se está verdadeiramente a borrifar para o seu destino ou de quem duvida que um tribunal possa dar punições à séria.
“Quer prestar declarações?”, começa a juíza.
“Para já não desejo”, responde o Zé Pedro, como quem diz que neste momento não lhe apetece ouvir música ou comer figos.
De mãos e cotovelos desleixados em cima da barra que separa o banco dos réus da juíza e do magistrado, Zé Pedro só muda de ideias quando percebe que se confessar verá as taxas de justiça reduzidas a metade. Nessas alturas, um homem sovina faz tudo por uns trocos, até voltar atrás e perder tempo a falar sobre uma causa para a qual se está aparentemente a marimbar: ele próprio. Bastava olhar três segundos para o Zé Pedro curvado na barra como se estivesse à janela para perceber que não estava minimamente interessado em salvar o couro. E que poderia estar ali ou na roulotte dos couratos: o respeito era o mesmo.
“Mas porque é que não deseja falar? Porque estes factos são verdadeiros?”, aperta a juíza.
“Sim.”
[...]
Faz-se silêncio, na expectativa de que o arguido acrescente qualquer coisa em sua defesa: bolas, pequeno criminoso que é pequeno criminoso tem sempre à mão um punhado de desculpas mirabolantes. É só isto? Ele não vai dizer que só pegou no carro porque teve uma emergência inadiável do tipo “o Rei Ghob ligou a avisar que o mundo ia acabar e fui despedir-me dos meus amigos”? “A minha mãe precisava de ir levantar o rendimento mínimo”? “O meu periquito partiu uma pata”? “A minha tartaruga estava em apuros”?
Caramba que este Zé Pedro só se pode ter enganado no tribunal!
“Então e quer explicar porque estava a conduzir se não tem habilitação legal para o fazer?”
“Oh. Estava. É isso.”
A juíza bem insistiu, mas o Zé Pedro não se quer salvar. No lugar da juíza podia estar o leitor ou o Papa: o Zé Pedro continuaria a responder por monossílabos e com cara de parvo. Ou, como se diz por aí na gíria popular, com cara de cu à paisana, segundo dicionários de expressões populares, aquele “indivíduo que não presta para nada; maçador; sem persona- lidade ou utilidade; que empata; um basbaque”. Perante tamanho basbaque, que é como quem diz cara de cu, o procurador do Ministério Público é demolidor no sermão.
O caso seria banal não fora a tragédia da repetição. Pelas minhas contas vamos na sétima condenação. Como o arguido estudou Antropologia, devia saber que a persistência é própria do artrópode, mas a violação das regras na aldeia global também tem consequências que não se podem olvidar. Chega de desobedecer à lei e de pôr em risco a vida de terceiros. Está convocado o tribunal para dar a pena de prisão que o arguido tem procurado com o seu comportamento desafiador das leis e das regras.”
O advogado de defesa ainda tenta salvar o réu mais indiferente da história do Sacanas com Lei, alegando que “errar é humano” e que ele “demorou, mas percebeu que o seu modo de viver não era o correcto”.
(Ó senhor advogado, tem a certeza que estivemos a assistir ao mesmo julgamento?)
“E até está a tirar a carta e tem exame marcado para dia 22.”
O advogado fez tudo o que pôde. O pior é que o réu não fez nada. A juíza condena-o a 18 meses de prisão, desta vez ainda suspensa. Mas, se o Zé Pedro insiste em cometer crimes desta maneira obsessivo-compulsiva, nem queremos imaginar como vai acabar a repetição da tragédia.
Sílvia Caneco, aqui
