sábado, 14 de janeiro de 2012

DE DIA UM RAPAZ BRILHANTE, DE NOITE UM PIRÓMANO DE CAIXOTES

Vida dupla de João
Boas famílias e um futuro promissor. João tem tudo para dar certo, menos nas noites em que decide percorrer as ruas de Lisboa a incendiar caixotes do lixo da câmara.

A advogada de defesa entra esbaforida na sala de audiências, cheia de sacos e saquinhos, papéis e papelões, livros e livrinhos, equilibrada nuns finíssimos saltos altos. “Ó João, afinal onde é que está o carro?”, pergunta ao arguido enquanto faz malabarismos para conseguir pousar a tralha toda em cima da mesa.

“Em casa”, responde-lhe o rapaz, 19 anos acabados de fazer, uma noite mal dormida em cima e olhos apontados para o chão. “Já falei com o seu pai, sabe?”, continua a advogada, agora a mexer num telemóvel cor-de-rosa choque. “Como você nunca mais aparecia em casa, os seus pais estavam a ir para a esquadra apresentar queixa do seu de-saparecimento.” João engole em seco. “De maneira que o seu irmão se viu obrigado a contar-lhes a verdade.” João engole em seco outra vez.

A porta da sala de audiências abre-se e o procurador do Ministério Público entra aos cochichos com a juíza. A advogada ainda tem tempo para deixar um último recado ao arguido: “Isto só para saber que vai levar um raspanete à moda antiga quando chegar a casa.” Está o João outra vez a engolir em seco quando o técnico de justiça desata numa guerra furiosa contra a porta lateral da sala – que decidiu empenar. A batalha termina com o funcionário a usar a saída principal, depois de enfiar uma biqueirada discreta na porta. E o João no banco dos réus, pronto para o que há-de vir: a sentença da justiça e o raspanete à moda antiga que o espera em casa. Logo o João, que até tem tudo para dar certo na vida: solteiro, boas famílias, estudante de Economia e Gestão numa das faculdades mais conceituadas de Lisboa, a vida toda pela frente. Mas já se sabe que no melhor pano cai a nódoa e o rapaz está acusado de dano qualificado.

Eram quase seis da manhã quando foi surpreendido pela polícia, sozinho, a incendiar um caixote do lixo na rua José Travassos, em frente ao número 31. A juíza descreve, cuidadosamente, o modus operandi. Tão devagar, que parece infligir no arguido bocadinhos de dor. “O senhor João começou por incendiar um conjunto de papéis com um isqueiro; depois colocou--os dentro de uma garrafa; de seguida, atirou-a para dentro do caixote, que é propriedade da Câmara Municipal de Lisboa. Poucos minutos antes, os agentes da PSP tinham avistado, junto ao número 35 da mesma rua, um poste com outro caixote já em chamas.”

Silêncio.

“Porque é que fez isto, senhor João?”
“Não sei. Por estupidez.”
“Tinha bebido?”
“Cerveja.”
“Mas estava alcoolizado?”
“Não propriamente.”
“Tem algum prazer relacionado com o fogo?”
“Não, foi um momento de...”
“De?”
“Um momento... encontrei o isqueiro e...”
“Não era seu, o isqueiro?”
“Não, eu não fumo.”
“Está aqui escrito que você disse aos polícias que queria ver os caixotes arder...”
“Não era por prazer, queria só vê-los arder.”

A advogada de defesa pede clemência, que o arguido é bom rapaz e bom estudante. E suplica que o trágico incidente não seja transcrito para o seu registo criminal. Afinal, ele confessou. Foi um acto de estupidez, uma palermice, uma infantilidade, é certo, mas uma multa deve chegar para que o jovem aprenda de uma vez por todas que não se incendeiam caixotes do lixo – muito menos os da câmara.

O procurador do Ministério Público, hoje claramente com pouca vontade de litigar o que quer que seja, limita-se a pedir “justiça”. E o João, envergonhadíssimo, continua numa pilha de nervos. É que a brincadeira pode parecer coisa de miúdos, mas é punida com uma pena de prisão que pode ir até cinco anos ou, em alternativa, uma multa até 600 dias. “Atendendo a que este acto pode ter sido um episódio isolado na sua vida, decidi aplicar-lhe o regime especial para jovens delinquentes, senhor João”, anuncia por fim a juíza.

E é assim que um brilhante aprendiz de Economia passa, em menos de nada, a jovem delinquente. Mas a verdade é que a despromoção traz vantagens: o regime é uma atenuante e uma espécie de cartão-jovem no mundo do pequeno crime. Em vez dos cinco anos, a moldura penal baixa para um máximo de três anos e quatro meses de prisão ou multa até 400 dias. O João acaba com uma multa de 375 euros e o isqueiro declarado perdido a favor do Estado. Está encerrada a sessão e o arguido suspira de alívio, mas por pouco tempo. “O seu pai está lá fora à sua espera”, anuncia-lhe a advogada. João engole em seco, mais uma vez.

Rosa Ramos, aqui