quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

A MORTE DO URSO DE PELUCHE

A menina tem de fazer um trabalho para a escola sobre girafas mas a televisão lá de casa tem uma espécie de avaria, quer dizer, desde que o pai ficou desempregado não há como pagar o canal dos documentários.

O que acontece a partir daí é hilariante, cruel, comovente e sábio. É uma peça de teatro que está em digressão pelo país, chamada "Tristeza e Alegria na Vida das Girafas", de Tiago Rodrigues, com actores cujos nomes e fotos não aparecem nas páginas cor-de-rosa e que são muito, muito bons.

O mundo visto pela lógica implacável de uma criança não tem diplomacia nem condescendência. Não é uma visão povoada por flores e borboletas, é muito pragmática e absorve sucessivas aprendizagens sem o tempero que no futuro se traduzirá em conceitos morais. Uma coisa é ou não é, não há assim-assim nem o desconto das subtilezas. Por isso, quando a menina vai à procura de dinheiro para pagar o canal por cabo atravessa uma realidade que lhe mata a infância e o delicioso urso de peluche.

Há muitas razões que me levam a gostar de ir ao teatro e lamento não poder ir com mais frequência. Ir ao cinema é mais prático, porque o mesmo filme pode ser visto em diferentes salas e com horários variados. Mas o teatro, como o bailado ou o circo, tem a força da presença física, do risco, do improviso, tem variáveis que o cinema reduz com a repetição das filmagens e respectiva montagem.

Longe do glamour das passadeiras vermelhas de Cannes ou Hollywood, a vida dos artistas e de todos os que estão envolvidos nestas artes é de uma instabilidade que exige enorme entrega e persistência. São pessoas que se dispõem a viver no fio da navalha e que nos dão emoções como a que preenche o belíssimo filme de João Canijo, "Sangue do meu Sangue".

Ontem, no dia a seguir à festa dos 70 anos de carreira de Eunice Muñoz, ficou definido no Orçamento de Estado o aumento do IVA para os espectáculos, numa percentagem intermédia de 13 por cento.

Não estou de acordo mas não vou deixar de ir ao cinema, ao teatro, ao bailado, ao circo, não vou deixar de comprar livros nem de visitar museus e exposições porque o preço vai subir. Desertar da cultura seria uma desistência do que me faz aprender mais e mais sobre a vida e o mundo, sobre o passado e o presente, sobre a capacidade humana para se transcender. Por isso gostei da campanha lançada pelo Teatro Nacional D. Maria II para este Natal: propõe a oferta de vales para espectáculos e livros.

A realidade mata a infância e o ursinho da menina das girafas, e essa viragem não faz dela melhor nem pior, apenas menos crédula e mais informada. Mais crescida.

Ana Sousa Dias, aqui