quarta-feira, 30 de novembro de 2011

A VIDA NUMA CRISE CINICAMENTE BANAL

Fim-de-semana. Vou fazer compras ao supermercado. Quando trago o carrinho das compras, já cheio, de volta ao parque de estacionamento para carregar a viatura, sou abordado por uma rapariga.

Deve ter uns 30 anos. Antes, ao longe, vira que ela já fora rechaçada por outros a quem dirigira a palavra.

Pensei que me ia pedir dinheiro. Não. "Pão", disse ela, "dê-me pão". Corei, estupidamente envergonhado pela abastança das minhas compras. Dei-lhe um saco de pão, sem dizer nada. Ela agarrou-o e seguiu, sem me dar tempo para entregar qualquer coisa mais. Deitou para o ar um "muito obrigado", a fugir ao meu contacto visual. Desapareceu. Estou no século XIX.

Vou ao hospital, visitar uma amiga. No corredor sou interpelado: "Você é o Tadeu?" O homem que me identifica, da minha idade, a caminho dos cinquenta, trabalhara comigo há 15 anos, na redacção de um jornal diário que chefiei. Comandara uma secção técnica, exigente e crucial. A reputação da sua competência era incontestável. Eu saí desse jornal, ele ficou. Anos depois, a empresa fechou. Desde aí, há seis ou sete anos, este antigo companheiro fez o que tinha de fazer: entrou e saiu do subsídio de desemprego, aceitou todo o tipo de trabalhos temporários, sujeitou-se a todas as experiências e cursos de formação. Nunca mais exerceu a especialização que adquirira no mundo da imprensa. "Já tirei daí as ilusões", fraseia, a sorrir. Desde o princípio do ano voltou ao desemprego. "Luto contra o tédio, para não apanhar uma depressão: todos os dias saio de casa às sete da manhã para comprar o jornal. Vejo os anúncios e respondo quase sempre a um..."

Vou almoçar, domingo, com um amigo. Ao café faz um pedido: precisava de dinheiro emprestado, não muito, só o suficiente para resolver este mês um atraso no pagamento da escola dos filhos... "Isto está mau. Até já cortei a Sport TV, vê lá tu, nem vi o Benfica-Sporting", parodiou.

À noite o telefone toca. A história que a pessoa do outro lado da linha conta resume-se nesta frase, dita em toada soluçante: "Cedi. Humilhei-me. Não tinha outra solução. Fui pedir o subsídio de desemprego. Agora tenho de dar contas da minha vida ao Estado."

Segunda-feira. Vou trabalhar. Ao sair do metropolitano, no Marquês de Pombal, passo pela habitual fila das pessoas com impresso nas mãos para declarar ao mundo a posse de uma pobreza que justifique o prémio de um passe social mais barato. Reconheço a cara de um vizinho. Ele não me vê. Sigo, lesto.

Releio as notícias sobre a greve geral a que aderi, quinta-feira passada. Fiz bem.

Pedro Tadeu, aqui