terça-feira, 29 de novembro de 2011

MÁRIO SOARES: 'SE A EUROPA NÃO MUDA, TERÁ DE HAVER UMA REVOLUÇÃO'

Mário Soares lança amanhã em Lisboa o livro “Um Político Assume-se”, onde conta a história da sua vida política. O ex-Presidente mostra-se preocupadíssimo com a situação na Europa e admite que podemos estar em vésperas de “uma revolução”. “As revoluções às vezes são rupturas e resolvem os problemas.” Acha que o medo que existe no PS de que Seguro se possa preparar para entrar no governo “é um perfeito disparate”.

Escolheu este título, “Um Político Assume-se”, porquê?
Escolhi este título por ser contra a corrente. Agora diz-se que os políticos são todos uns malandros, toda a gente diz mal dos políticos, injustamente. Há políticos bons e há políticos maus. Infelizmente, agora há poucos bons, mas há alguns. Eu sempre fui político. A partir de certa altura da minha vida cheguei à conclusão que a política era o meu destino e a minha paixão, que é o título de um capítulo do livro. Achei que era um título interessante. Agora que toda a gente diz mal dos políticos, que são mais necessários do que nunca, está aqui um que se assume.

Porque recusou escrever um livro de memórias? Este livro não é de memórias...
Não é um livro de memórias, mas tem memórias políticas. Eu gosto muito de livros de memórias, e li muitos. A começar pela nossa marquesa de Alorna, Raul Brandão, Churchill, De Gaulle e muitos outros. Escrever um bom livro de memórias é muito difícil. O memorialismo é um género literário. E eu não queria ser julgado como memorialista, mas como político. Por outro lado, tenho um certo pudor em falar de mim mesmo.

Não fala muito da sua vida privada. Fala da sua mulher, do casamento...
O meu casamento foi feito na cadeia do Aljube. Tem originalidade por isso. Agora o Aljube é um museu. Espero que não o tirem de onde está e terminem as obras de reconstrução. Para que os jovens compreendam os horrores da ditadura. Para que saibam o que era um “curro”. Uma vez estive lá preso 22 dias seguidos. Isolado, quase não havia luz. Não se podia andar nem ler. Um espaço pequeníssimo, com um pé-direito enorme. E o pior é que havia outros presos perto que choravam e gritavam, perdiam completamente o domínio de si mesmos.

Nunca perdeu as estribeiras nessas situações. É o que transmite no livro...
Não. Levaram-me para lá, depois de ter estado três dias e três noites sem dormir, na PIDE. Estava muito debilitado. Aperceberam-se de que eu poderia ter uma síncope ou coisa assim e que não falava. Mandaram-me então para os curros no Aljube. Tinha uma manta esburacada e uma tábua, com uma enxerga, onde dormia. Adormeci logo, assim que lá cheguei. Passado algum tempo, lá pelas três ou quatro horas da tarde, o guarda deu--me um estremeção e disse: “Caramba, dormir tanto até apodrece.” Nunca me esqueci desta frase. No tempo que lá estive, nos curros, a maior parte do tempo estive a dormir.

No livro, quando se mostra mais em baixo é depois da morte do seu pai...
Estava junto a um lago – Piediluco –, pequena povoação a 100 quilómetros a norte de Roma, onde não havia quase ninguém no Inverno. Foi lá que acabei o livro “Portugal Amordaçado”. Estive três meses absolutamente sozinho. Não tinha rádio nem televisão, nada. O Mário Ruivo foi quem me emprestou a casa e o Tito de Morais vivia exilado em Roma. Ambos me telefonavam uma vez por semana. Foi lá que os meus filhos, vindos a Itália para me ver, me deram a notícia da morte do meu pai. E eu resolvi voltar de imediato a Portugal, convencido de que ia ser preso à chegada ao aeroporto de Lisboa. Mas não fui. Deixaram-me ver o meu pai, embora já falecido. Deve ter pesado na resolução de Marcello Caetano o facto de ser genro de um ministro da Primeiro República, amigo do meu pai, João de Barros. Muitos anos antes, o meu pai assistiu ao casamento de Marcello. Não se deve ter esquecido disso e sabia quem eu era, tinha sido meu professor na Faculdade de Direito. Depois do 25 de Abril ficou completamente contra mim. Antes ficou furioso com o livro que eu escrevi no exílio, “Portugal Amordaçado”. Aliás, mandei-lho, com uma dedicatória, por intermédio de um amigo comum, Abranches Ferrão, que foi quem me contou da raiva que Caetano me tinha.

Mandou o “Portugal Amordaçado” ao Marcello?
Claro que mandei, com uma dedicatória! Tinha sido meu professor, tínhamos boas relações, porque é que não havia de mandar? Pedi ao meu amigo Abranches Ferrão, que tinha sido colega dele de curso, tratavam-se por tu. “Abranches Ferrão, peço-lhe que leve este livro ao Caetano. Quero que ele o receba pelas suas mãos.” E quando o Abranches Ferrão chegou ao Marcello e disse “Tens aqui um livro do Mário”, Marcello levantou-se, abriu a gaveta da secretária e tirou um livro: “Está todo anotado, como podes ver. É uma infâmia.” [Risos.] Desde essa altura, não houve mais relações. No Brasil escreveu um livro de memórias em que me chamou um advogado medíocre da Rua do Ouro…

Mas Marcello gostava do senhor doutor na faculdade...
Disse-me até: “Você pode vir a ser um dia professor desta casa”, o que para ele era o máximo que podia dizer a qualquer pessoa. “Mas, claro, tem de abandonar essa pequena política em que tem andado.” Respondi: “Não estou especialmente interessado em ser professor desta casa…” A conversa terminou assim.

Mas pensou que Marcello Caetano pudesse ter outra reacção perante o “Portugal Amordaçado”?
Eu era, obviamente, um adversário político seu. Mas podia ter tido uma certa tolerância. Não teve. Cada um é como entende dever ser. Por mim, sempre me considerei uma pessoa normal. Por exemplo, este livro, “Um Político Assume-se”, não é o livro de um ressentido. É de alguém que passou muitas coisas, más e boas, sem ficar com ressentimentos contra ninguém. Pelo contrário.

As referências a Salgado Zenha são até de grande ternura, embora tenha tido com ele uma grande guerra.
Não chegou a ser uma grande guerra. No debate televisivo ele deu-me o que chamei “um soco no estômago”. Eu disse-lhe: “Nós somos da mesma família, somos amigos e irmãos desde sempre.” E ele disse-me: “Não, eu não sou da tua família.” Aquilo foi um murro no estômago em plena televisão. Mas passou. Ganhei as eleições. O comportamento dele, aliado dos comunistas, quando o PREC estava ainda na memória de toda a gente, foi algo que não compreendi. Mas isso não me fez esquecer o velho companheirismo de sempre. Zenha foi um grande lutador antifascista. Por isso, como Presidente, condecorei-o com a Ordem da Liberdade.

Houve coisas em que Zenha não concordava consigo e o senhor doutor acabou por ceder.
Uma vez, que me lembre. Quando eu quis cortar no 11 de Março e sair do governo. Mas o Zenha tinha a teoria contrária. Eu pus-me a pensar e acabei por concordar com ele. Era preciso aguentar até às primeiras “eleições livres”. Zenha era um homem clarividente, inteligentíssimo, muito bem preparado nos planos jurídico e político. O Cardia e eu queríamos cortar logo e Zenha achou que era necessário que engolíssemos aquele sapo, o 11 de Março, para podermos ter eleições. Achei que ele tinha razão e mudei de opinião.

Na véspera do 25 de Novembro vai para o Porto. Conta no livro aquela viagem pela costa...
As tropas estavam todas no Porto. O general Lemos Ferreira tinha levado todos os aviões para o Porto. Eu tinha combinado com o primeiro-ministro britânico, James Callaghan, mandar um petroleiro imenso para abastecer os aviões. E chegou a estar lá, nas águas internacionais, mas mesmo em frente a Leixões. Estava tudo preparado se tivéssemos de bombardear Lisboa.

Nessa altura, nunca teve medo físico?
Pensava que essas coisas nunca me poderiam suceder a mim [risos]. Ou se tem medo ou não tem. Eu não pensava nisso. Claro que podia haver um sarilho, que podiam dar-me um tiro. Muitos amigos meus vieram a Lisboa e disseram-me: “Você tem de fugir, você vai ser morto.” E Kissinger disse a mesma coisa: “Você fique aqui, eu arranjo-lhe um lugar numa universidade americana.” E eu respondi: “Numa universidade americana? Eu, que não sei uma palavra de inglês? Eu vou voltar é à minha terra, já estive bastante tempo exilado!” Eu tinha esta inocência de quem está convencido de que não vai acontecer nada. Podia acontecer, mas não aconteceu, felizmente. Nunca deixei de dormir lindamente.

No livro conta que nessa altura começou a conspirar com o Grupo dos Nove e com a Igreja.
A Igreja teve um papel muito importante. Uma vez, muito antes, o cardeal D. António Ribeiro telefonou-me a dizer que estava a ser assaltado o Patriarcado, pela UDP...

Quando foi o cerco ao Patriarcado...
No início do PREC. O patriarca tinha pedido auxílio ao Presidente da República, ao primeiro-ministro e ninguém lhe tinha dado, porque – diziam – não havia forças para intervir. E ele dizia: “O que é que eu faço aqui metido?” Eu respondi-lhe: “Nós vamos fazer uma contramanifestação!” E fomos. Naquela altura arranjava-se uma contramanifestação em cinco minutos. Era só dizer “vamos a eles”. E assim foi. E isso impediu o assalto ao Patriarcado. O patriarca tinha sido simpático comigo. Antes do 25 de Abril fui a Roma, quando estava no exílio em Paris. Houve um socialista português, que era católico, que me disse: “O patriarca gostaria muito de o conhecer.” Foi então que falei com ele pela primeira vez. Foi simpatiquíssimo, manifestou-se como progressista, muito preocupado com as guerras coloniais. Depois disso mandei-lhe o meu livro “Portugal Amordaçado”, que mais tarde apareceu na PIDE, com a minha dedicatória. A PIDE procurava sempre informações sobre o cardeal, não tinha confiança nenhuma nele do ponto de vista político. E depois houve o caso da Rádio Renascença. Nessa altura conversei algumas vezes com o patriarca. Antes do 25 de Novembro estávamos à beira da guerra civil e resolvemos fazer uma grande manifestação na Fonte Luminosa, que foi a maior manifestação de sempre em Portugal. Fui falar com o cardeal, por intermédio da Maria de Lourdes Pintasilgo, que nessa altura estava totalmente comigo. Aliás, esteve quase sempre. Só houve alguma rivalidade quando foi candidata à presidência. Mas deu-me muito jeito, porque teve 7%. Se não fosse isso, talvez não tivesse chegado a número dois. Nessa altura disse a Maria de Lourdes Pintasilgo que precisava de falar com o cardeal. E o cardeal pediu-me, por intermédio dela, que fosse às tantas da noite a uma casa de freiras que há ali entre a Bertrand e o São Carlos. Estivemos uma hora a conversar. Disse: “Senhor cardeal, se nos quer ajudar, tem uma maneira. Diga aos padres da área de Lisboa que no final das missas vão à Fonte Luminosa.” E foram. Uma boa parte da gente que estava na Fonte Luminosa era católica [risos].

É muito pouco conhecida a história da conspiração do PS com a Igreja. Aliás, tendo o senhor sido sempre um laico...
Sim, houve contactos importantes. Sempre fui agnóstico e nunca fiz saneamentos políticos contra ninguém. Fui ministro dos Negócios Estrangeiros e acho que foi o único ministério onde não houve saneamentos. Achei sempre que a Revolução do 25 de Abril não era para nós fazermos o mesmo que os adeptos da ditadura nos fizeram a nós. Sempre fui e preguei a tolerância. Aliás, os militares de Abril tiveram a grande inteligência de deixar ir Marcello Caetano e o Presidente da República para o Brasil. Se os têm julgado, nunca mais aquilo acabava, teria sido uma desgraça. Apoiei isso desde sempre. E no meu ministério disse: “Comigo não há saneamentos!”

Não mudou os embaixadores?
Mudei alguns de embaixada mas não demiti ninguém. Disse aos embaixadores todos: “A nossa política vai mudar 180 graus. O que dantes era péssimo (a ONU) passa a ser amigo. A autodeterminação é o nosso objectivo. Claro que aos senhores que não quiserem aceitar a nova política posso talvez arranjar postos discretos. Não os quero pôr fora. Perguntei se alguém se queria pronunciar, ninguém se pronunciou. Estava toda a gente de acordo. Houve um caso muito especial, que era o do embaixador Hall Themido, que estava em Washington. Era amigo íntimo do Franco Nogueira. Chamei-o e disse-lhe: “Senhor embaixador, não o vou pôr fora. Vou deixá-lo em Washington, desde que o senhor esteja de acordo com a política que vou fazer, que é 100% contrária à que antes lhe era pedida. Aceita isso?” E ele disse-me, olhos nos olhos: “Eu sou um profissional e cumpro as ordens do ministério.” E cumpriu. Foi óptimo, porque, perante a desconfiança que havia na América em relação à Revolução, ele estava ali a mostrar aos americanos que o Portugal da Revolução dos Cravos era progressista e moderado. Foi um excelente embaixador.

Na altura era das poucas pessoas que sabiam ao certo o que queriam para o país...
Direi que era um dos que sabiam. Quando vinha no Comboio da Liberdade vinha a pensar o que seria o futuro. Tinha noções muito claras. A primeira coisa era acabar com as guerras coloniais. Não poderíamos ser uma democracia mantendo as guerras coloniais. Não era possível. A segunda, teríamos de estabelecer uma democracia pluralista e civilista. E depois tínhamos uma crise do petróleo, a crise económica, o regresso dos retornados e precisávamos de fazer negociações com o FMI e pedir a entrada na União Europeia. Ora a verdade é que todas as coisas referidas se foram sucedendo, embora com muita discussão e variadíssimas incompreensões.

Lembro-me que o MES (Movimento da Esquerda Socialista), que viria a dar muitos dirigentes ao PS, apelou nas primeiras eleições ao voto em branco...
Um absurdo completo! Era o vento do Leste que dizia que não era preciso votar. Cunhal não queria eleições, mas foi obrigado a transigir com elas, pelos militares. O próprio Vasco Gonçalves tinha-se comprometido com os militares a fazer eleições. E disse isso várias vezes a Cunhal. Foi por isso que Cunhal nunca insistiu contra as eleições. Não podia, porque sabia que para Vasco Gonçalves e para os militares era uma questão de honra fazerem as eleições. E eles cumpriram. Mas não foi fácil fazê-los cumprir.

Acha que a Europa que ajudou a fundar vai acabar nos próximos tempos?
Acho que não. A Europa está numa crise profundíssima, está à beira do abismo. Primeiro foi a Grécia. A Alemanha tratou muito mal a Grécia, infelizmente. Foi a Alemanha que ganhou muito dinheiro com os gregos e agora deixou-os cair, esquecendo-se que a Grécia foi o berço da civilização europeia, da democracia, da ciência e da cultura. A União Europeia está desorientada. Dantes era constituída por duas grandes famílias políticas: os socialistas e os democratas-cristãos, que seguiam a doutrina social da Igreja. Hoje não há democratas-cristãos, ou quase não há, porque já não seguem a doutrina social da Igreja, seguem o neoliberalismo, tendo o dinheiro como principal valor. Estas duas famílias políticas foram colonizadas pelo neoliberalismo. O senhor Blair teve uma importância maléfica nisto tudo, porque convenceu bastantes partidos socialistas europeus a converterem-se à “terceira via”. O dilema que existe hoje já vem de há dois ou três anos: ou mudam o modelo de desenvolvimento ou todos os estados europeus vão entrar numa decadência profunda.

Acha que a Europa consegue vir a ser uma federação democrática?
Para subsistir não pode deixar de ser uma federação democrática. É verdade que estão a nomear primeiros-ministros não eleitos. É grave. Digamos que foi em casos de emergência. Mas vão ter, queiram ou não, de mudar. Se não mudam, vai ser terrível. Não só para nós, europeus, mas para o resto do mundo. E não sabemos onde podemos parar. Se for assim, terá de haver uma revolução. As revoluções às vezes são rupturas e resolvem os problemas. Tenho alguma esperança numa revolução pacífica, não violenta, mas na ruptura profunda. Não gostaria de uma revolução violenta no meu país. Seria terrível para todos.

Em Portugal estamos sob tutela da troika...
A troika, como diz, bem, o presidente do BPI, é um conjunto de tecnocratas de quinta ou sétima linha, que julgam poder governar por nós. Alguém aceitará que tecnocratas estrangeiros, de várias procedências, governem o nosso país? Mas por que carga de água?

Mas já estão a governar.
Não, não estão a governar. Estão a dar conselhos, e esses conselhos são acolhidos pelo governo. Como se fossem ordens. Esse é o mal. Ora nós estamos a cortar tudo e não estamos a construir nada para obter maior crescimento económico e para reduzir o desemprego. Se assim continuar, daqui a um ano vamos estar pior do que estamos hoje. Para que nos serve então a austeridade que vem aí?

O argumento do primeiro-ministro é que não tem dinheiro para fazer o crescimento funcionar.
Acho que haverá sempre outras formas de o arranjar.

Lendo o último capítulo do livro, fica-se com a ideia de que o senhor doutor não tenciona parar.
Tenho consciência da minha idade e das minhas limitações. Vou continuar a dizer aquilo que penso, o que é um privilégio e, no plano ético, um dever.

É uma pessoa absolutamente saudável...
Até agora tenho sido, não quer dizer que continue a ser...

A dada altura escreve que às vezes pensa na morte.
Dantes nunca pensava nisso. Mas há dias pensei: “Se eu morrer, o que me vai suceder? Vou ser incinerado? Vou para debaixo da terra?” Não faço ideia nenhuma. Não tenho ideia sobre isso. Nunca pensei na morte. Talvez esteja na altura de começar a pensar. Mas tenho tantas solicitações e interesses intelectuais que me falta o tempo (ainda bem) para pensar na morte.

O seu pai viveu muito.
Morreu com 92 anos. Perfeitamente lúcido.

O seu amigo Edmundo Pedro tem 100 anos...
Não, tem 90 e tal. Quem tem 102 anos é o Manoel de Oliveira. E há outros. Mas para chegar a essa idade é preciso estar em boa forma. Se não, não vale a pena. Eu não me estou a queixar, considero-me bem. E trabalho muito. Faço todos os dias muitas coisas. Este livro deu-me muito trabalho.

O senhor doutor foi simpático com o Pedro Passos Coelho...
Eu simpatizo com ele, tenho apreço por ele. Temos almoçado e conversado, às vezes, com interesse recíproco, creio. Mas ele, ideologicamente, pertence a uma família política que não é a minha. É um neoliberal. Acho que o neoliberalismo, nos últimos anos, tem sido a desgraça do planeta. Temos de mudar de paradigma, espero que pacificamente. Da mesma maneira que o colapso do comunismo nos trouxe uma aura de liberdade, tem de suceder com o neoliberalismo. Que é hoje uma ideologia esgotada.

Não há-de ser com a ajuda de Pedro Passos Coelho. Acredita no novo líder do PS, António José Seguro?
Acredito. Não votei nele nem em Assis: gosto de ambos. António José Seguro é uma pessoa muito diferente de Sócrates, porque é muito mais moderado, muito concentrado e prudente, não se irrita, não é dado a cóleras. Tem feito, até agora, um excelente papel. Há socialistas que julgam que ele se prepara para entrar no governo de Passos Coelho. É um perfeito disparate. Lá chegará o seu tempo. Seguro não está apressado, o que é bom para os socialistas.

Acha que o PS não aguentava um bloco central, mesmo em caso de “salvação nacional”?
Mas como? Com que política? De salvação nacional com esta política?

Temos um empréstimo, estamos a pagá-lo.
Dê tempo ao tempo. Siga com atenção o que se está a passar na zona euro da União. Daí virão certamente muitas surpresas. Até podemos não pagar.

Acha que era o que devíamos fazer?
Não estou a dizer isso. Estou a formular hipóteses. Caballo, o ministro argentino das Finanças, ia dando cabo da Argentina com a teoria neoliberal de acabar com o Estado. Mas quando há um problema toda a gente se vira para o Estado, até os bancos. Como é que o Estado pode responder, se vai cortar com as suas riquezas, a que chamam gorduras? Parece haver quem queira vender as jóias da coroa, a qualquer preço. A RTP, a TAP, a Águas de Portugal, os CTT, etc. A Argentina disse “não pagamos”. Ora – espanto! – não aconteceu nada. A contradição toda é que se fala em estados soberanos, mas quem manda são os mercados. Se isto não acaba, na União Europeia vamos todos ao fundo.

Acha que pode vir o dia em que, como a Argentina, vamos ter de dizer “não pagamos”?
Espero que não cheguemos lá. Espero que os dirigentes políticos europeus tenham o bom senso mínimo de perceber que ficarão na história como os Chamberlains europeus, ou pior, se mantiverem esta situação. Vão todos ficar com um ferrete que não desaparecerá.

E não há nenhum Churchill à vista?
Não há, mas pode surgir.

Quando o senhor doutor decidiu candidatar-se às presidenciais tinha a família toda contra, os seus dois filhos...
Perguntaram-me: “Mas para quê, pai? Que coisa horrível!” Mas aceitaram, não houve nenhum drama na família por causa disso.

Fala no livro de uma campanha contra si...
Acho, com efeito, mas isso passou. Houve uma campanha organizada contra mim pela comunicação social. A direita entendeu que eu seria perigoso.

Utilizaram o factor idade...
Com efeito, utilizaram o argumento da idade, mas felizmente eu vivi, este tempo todo, em bom estado de saúde (risos). Os argumentos foram a idade, a vaidade, a ânsia do poder, que eu nunca tive, como este meu livro comprova. Quando cheguei a Portugal e alguns camaradas defendiam que eu devia ser primeiro-ministro, disse--lhes francamente: “Não estou preparado para ser primeiro-ministro.” Não sabia nada de administração pública. Nunca tinha entrado num ministério. Mais tarde sugeri que fosse o Zenha. Ele não quis. Tive de aceitar e lá fui primeiro-ministro...

E recusou a candidatura a Presidente da República em 1976...
É verdade. Muitos queriam, no meu partido, e Sá Carneiro também, mas eu recusei. Sá Carneiro queria ser o primeiro-ministro e defendia que eu devia ser o Presidente da República. Mas eu não tinha maturidade suficiente. As Forças Armadas eram um terreno em que não me mexia bem. Quando, dez anos depois, entrei na presidência da República, pensei: “Teixeira Gomes foi Presidente quase dois anos. Se eu estiver aqui dois anos, já não será nada mau.” Afinal estive dez anos. Sem graves problemas, diga-se.

Em 1986 as eleições dividiram o país ao meio. Conta que a sua primeira preocupação a seguir foi mostrar que era o Presidente de todos os portugueses...
Contra a vontade de Mitterrand. Disse-me: “Se você ganha, tem de dissolver o parlamento e fazer como eu fiz.” E eu respondi: “Isso é que eu não faço. Tenho o país dividido ao meio e então tudo poderia entrar em polvorosa. Não é isso que eu quero para o meu país. Quero resolver isto de outra maneira.” E assim foi. Seis meses depois de eu ter sido eleito Presidente, já era bastante consensual.

E depois foi reeleito com 70% dos votos...
E depois perdi [risos]. Mas foi uma campanha divertida, onde eu cometi alguns erros, que aliás conto no livro, mas a derrota não me afectou. Não fiquei nada diminuído. Perder ou ganhar, em democracia, é a mesma coisa. Perdi eleições legislativas e perdi mais essa. Para mim não houve problema nenhum. Nunca me senti humilhado por perder uma eleição.

Fala no livro também do sótão do Guterres. Aqui era uma guerra entre o senhor e o secretariado...
Não foi uma guerra. Foi uma discordância difícil de vencer. Eu sempre fui amigo de Guterres e sempre tive uma grande admiração por ele. É um homem de superior inteligência, moralmente muito bem formado, mas não tem a capacidade de dizer não às pessoas. É um defeito para um político. Mas também acho o Constâncio inteligentíssimo ou o Sampaio... Não fiquei zangado com ninguém. Um dia, numa reunião do PS, fizeram-me um ultimato. Queriam ter 40% dos candidatos a deputados e o PS, de que eu era secretário-geral, teria 60%. Disse-lhes: “Não aceito essas contas. Ganhei as eleições no congresso e vou fazer como entendo.” Eles disseram: “Então, se não aceitar, vamos todos deixar de ser deputados.” Respondi: “Façam como entenderem.” E abandonaram a sala da Comissão Nacional. Fiquei a pensar com os meus botões: “Se calhar foi uma grande asneira. Eles vão-se embora, serão substituídos por camaradas menos conhecidos e vamos perder as eleições.” Mas já não podia fazer nada. Afinal ganhei as eleições, ao contrário do que supunha. E depois reconquistei-os a todos, foram todos “pescados” por mim, um a um. Nunca exerci represálias.

Foi atraiçoado pelo PS?
Nunca fui atraiçoado pelo PS. Alguns tiveram as suas ideias contrárias às minhas, não se pode falar em traição. Nunca tive ressentimentos. Eles não queriam tirar--me da liderança do partido, queriam era retirar-me o poder. E isso eu não aceitava. “Agora vou ficar aqui como um boneco a fazer o que vocês querem? Nem pensem!” Eu tinha a confiança de uma grande parte do país. Tinha grandes e sólidas relações internacionais. Por isso nunca quiseram retirar-me a liderança.

Fala do papel de Manuel Alegre, mas não quis voltar à questão das presidenciais...
Foi um episódio do passado. Não vale a pena voltar a discutir o que já foi discutido na altura das eleições.

Fala de vários amigos ao longo da vida. Quem eram os seus melhores amigos?
Tive sempre uma vida muito almofadada, do ponto de vista das amizades. Até hoje. Foi uma coisa que me tornou feliz a vida inteira e me deu muita confiança. Em primeiro lugar, sempre fui querido da minha família, do meu pai e da minha mãe, dos meus dois meios-irmãos. A minha mãe era uma mulher de armas, severa, mas o filho – eu – era outra coisa. Senti isso desde que comecei a perceber o que se passava à minha volta.

Foi uma criança mimada, no bom sentido?
No bom e no mau sentido. Sempre adorei o meu pai e a minha mãe. E os meus irmãos, muito mais velhos que eu. Fui aluno do Colégio Moderno, cujo director era o meu pai. Fui um aluno medíocre mas muito popular entre a malta do colégio. Entre os meus colegas, não era um menino do papá, tinha a total confiança deles. O meu pai deu-me descomposturas terríveis por ser um mau estudante. Talvez com excepção do 7.o ano, em que acabei o liceu e tive boas notas, no acesso à faculdade.

Ana Sá Lopesaqui