Finalmente, a vida voltava a correr de feição.
Chico conseguiu arranjar emprego como taxista, depois de quase dois anos no desemprego. E as condições propostas pelo dono do carro até nem eram más de todo: 35% do ganho.
Quem sabe se a vida não poderia começar a compor-se de vez? Chico divorciou-se da mulher e, por causa de não ter trabalho, viu-se obrigado a voltar para casa dos pais. Já se sabe que aos 47 anos não se dá um passo destes de ânimo leve. Com ele mudaram-se também a filha, igualmente desempregada, e o neto. Apesar de tudo, a vida prometia.
Mas bastaram 15 dias para o Chico se meter em complicações. Ia na rua quando conheceu Valentina, uma prostituta. "Não é feia de todo", pensou. A seguir ao trabalho levou-a de táxi para uma pensão. Porque a vida lhe estava a sorrir outra vez. Porque era preciso seguir em frente. Porque toda a gente diz que tem de se esquecer da Cristina. Naquela noite, quando deu com Valentina na rua, seios meios desnudos, pernas gigantes, lábios promissores e olhos ternos, esbatidos na maquilhagem colorida, Chico decidiu dar o passo. Havia de a levar para a pensão. "Tristezas não pagam dívidas, homem", dissera-lhe um amigo no dia anterior, entre meia dúzia de cervejas.
Valentina era meiga, voz agastada, e por vezes deixava os olhos ausentarem-se do pequeno quarto da pensão. Mas depressa voltavam outra vez para ele. Deitados na cama, aquela mulher doce pegou-lhe no rosto com as mãos quentes e jurou-lhe que tudo haveria de correr bem. "É tudo uma questão de paciência", prometeu-lhe. Na casa de banho, Chico, despenteado, sorriu-se ao espelho. "É tudo uma questão de paciência." E teve pena, porque sabia que teria de a mandar embora dali a nada. E um gajo não é ninguém sem a doçura de uma mulher.
Que se lixe. Havia de voltar à Valentina, na mesma rua. E ela haveria de lhe dar um sorriso cúmplice antes de voltar a entrar no táxi. Quando voltou à cama, pegou na carteira. Queria pagar-lhe já - que a ternura tem desejos súbitos. Mas os 50 euros que tinha recebido no final do expediente tinham desaparecido. "O que é que fizeste, Valentina?" E ela, imóvel e pálida, a olhá-lo a medo.
Ela, a puta, tinha-lhe ido à carteira. Abanou-a, gritou-lhe: "Onde puseste o dinheiro?" Vindos não sei de onde, o transtorno não deixa precisar, aparecem dois homens, prontos para acertar contas com ele. Chico ainda conseguiu trancar-se no quarto, deixou-os no corredor, aos murros e aos pontapés na porta.
Que se lixe. Havia de voltar à Valentina, na mesma rua. E ela haveria de lhe dar um sorriso cúmplice antes de voltar a entrar no táxi. Quando voltou à cama, pegou na carteira. Queria pagar-lhe já - que a ternura tem desejos súbitos. Mas os 50 euros que tinha recebido no final do expediente tinham desaparecido. "O que é que fizeste, Valentina?" E ela, imóvel e pálida, a olhá-lo a medo.
Ela, a puta, tinha-lhe ido à carteira. Abanou-a, gritou-lhe: "Onde puseste o dinheiro?" Vindos não sei de onde, o transtorno não deixa precisar, aparecem dois homens, prontos para acertar contas com ele. Chico ainda conseguiu trancar-se no quarto, deixou-os no corredor, aos murros e aos pontapés na porta.
A pensão chamou a polícia. E acorreram à chamada não um, mas dois carros-patrulha, coisa frequente, porque a rua fica na divisão entre duas esquadras.
Quando os agentes chegaram ao quarto estava Valentina estendida no chão. Esta é a versão de Chico.
A versão da polícia é que era Chico que estava no chão, a queixar-se de ter sido agredido por dois indivíduos. Já em tribunal, quer ele quer a polícia concordam num ponto: Chico estava bêbedo. Ainda na pensão, a polícia pegou em Valentina (ilegal no país), meteu-a no carro e arrancaram. Chico, ainda meio cambaleante, foi atrás, no táxi.
Na esquadra, confessa que se passou e injuriou os agentes. Queria apresentar queixa por ter sido roubado. Jura que lhe responderam que o assunto teria de ser tratado na outra esquadra, não naquela. Pediu aos agentes que o levassem lá. "Isto aqui não é nenhum serviço de táxis", ter-lhe-ão respondido. Chico passou-se. Gritou, esperneou, injuriou os polícias.
Na esquadra, confessa que se passou e injuriou os agentes. Queria apresentar queixa por ter sido roubado. Jura que lhe responderam que o assunto teria de ser tratado na outra esquadra, não naquela. Pediu aos agentes que o levassem lá. "Isto aqui não é nenhum serviço de táxis", ter-lhe-ão respondido. Chico passou-se. Gritou, esperneou, injuriou os polícias.
Acabou no tribunal na manhã seguinte, acusado de resistência e coacção sobre funcionário e injúrias agravadas. Mas Chico nega - menos a parte das injúrias - e diz ter sido brutalmente agredido por um dos agentes, que o arrastou por umas escadas acima, lhe deu porrada na cabeça e pontapés de perder a conta. Depois foi ao hospital, que confirmou as agressões.
Perpetradas por quem? Pelos agentes ou pelos chulos de Valentina? A polícia diz que o Chico já estava deitado no chão da pensão, todo pisado, quando responderam à ocorrência. Chico diz que foi agredido dentro da esquadra. No tribunal, o agente desiste da queixa das injúrias, mas continua a dizer que Chico lhe resistiu.
Perpetradas por quem? Pelos agentes ou pelos chulos de Valentina? A polícia diz que o Chico já estava deitado no chão da pensão, todo pisado, quando responderam à ocorrência. Chico diz que foi agredido dentro da esquadra. No tribunal, o agente desiste da queixa das injúrias, mas continua a dizer que Chico lhe resistiu.
Face à discrepância das versões, o juiz absolveu o Chico. In dubio pro reo - na dúvida, absolva-se o réu. Chico já pode voltar a casa. Dormir e quem sabe convencer-se de que tudo não passou de um pesadelo triste. E que a Cristina nem sonhe que aquela noite existiu.
Rosa Ramos, aqui