quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

"O DISCURSO DO REI": UMA FRASE PEQUENA PARA O HOMEM. UM DISCURSO GIGANTE PARA A HUMANIDADE


O Rei Jorge VI teve dificuldades em ler o seu discurso. O argumentista David Seidler fez um esforço heróico para escrevê-lo.

É má educação tentar completar as frases ou sabotar um raciocínio de um gago ao tentar adivinhar a palavra se-se-seguinte. A situação torna-se mais complexa quando a pessoa a gaguejar à nossa frente é o Rei de Inglaterra. Mas perante este acaso, Lionel Logue não vacilou. Os invulgares métodos do terapeuta da fala ajudaram o monarca a enfrentar o medo comum a muitas pessoas - o de falar em público - e um problema de fala que não é assim tão incomum (em Portugal são 10 mil), a gaguez. A Academia ficou impressionada e "O Discurso do Rei" está nomeado para 12 Óscares. Mas não foi um parto fa-fácil.

Um, dois, três. Diga lá outra vez.
"Não havia muita coisa escrita sobre o terapeuta da fala de Sua Majestade, Lionel Logue, muito menos nas suas biografias oficiais. Nem nada publicado sobre a gaguez Real; parecia uma fonte de profundo embaraço", contou David Seidler num artigo publicado no "Daily Mail", no final do ano passado. Seidler, o argumentista de "O Discurso do Rei" queria muito corrigir essa falha, mas teria de esperar.

David Seidler cresceu com o mesmo problema de sua Majestade o Rei Jorge VI. A gaguez, provocada pelo trauma da guerra durante a infância, entristecia o jovem David que, no entanto, encontrava consolo nos discursos corajosos do rei. "Ouvia pela rádio os discursos onde se ouvia cada sílaba que ele dizia com tanta paixão e intensidade", contou. Enquanto crescia David foi recolhendo mais informação sobre o Rei, mas a pesquisa pelo passado do seu terapeuta da fala levavam-no sempre até um beco sem saída. Até conhecer Valentine Logue.

O filho do terapeuta Real contou-lhe a história do pai e concordou em emprestar a Seidler os seus cadernos de apontamentos. Mas com uma condição: o então escritor só podia utilizar todo este material depois da morte da Rainha Mãe (no filme o papel cabe a Helena Bonham Carter). Ora a Rainha Isabel I, Duquesa de Iorque e mulher de Jorge VI, viveu 101 anos, tornando a espera de David Seidler numa agonia interminável.

Só depois de 2002, e de um mediático funeral real, o escritor pôde por as mãos na obra que daria origem a "O Discurso do Rei", mas um cancro três anos mais tarde atrasaria novamente o processo. Finalmente, em 2005, Seidler terminou o texto que entretanto tinha passado de guião de cinema para argumento de teatro. Numa pequena encenação no Pleasance Theatre, em Londres, estava a mãe de Tom Hooper que ligaria em seguida ao filho para dizer: "Encontrei o teu próximo projecto". As mães são assim.

Hooper, que fez "Maldito United" ou a série para TV "John Adams", pegou na história e começou a filmar em 2009. A espera de Seidler compensava finalmente: foi nomeado para Melhor Argumento Original e perdeu nessa mesma categoria o Globo de Ouro. Mas a glória não podia chegar sem um bocadinho de controvérsia.

Christopher Hitchens, escritor, ensaísta e chato dum raio, foi o primeiro a apontar os erros históricos do filme. De acordo com Hitchens, que publicou na imprensa inglesa e norte-americana o violento ensaio "Why The King''s Speech is a gross falsification", personagens como Wisnton Churchill ou o próprio rei foram excessivamente romantizados. "[Churchill] é visto como um amigo consistente do príncipe gago, um homem a favor de uma solução de Estado à crise apresentada pela abdicação ao trono do seu irmão mas velho, o Rei Eduardo VIII".

Hitchens tem razão em embirrar com esta e outras imprecisões históricas, mas há várias explicações para isso. A principal é de que o guião foi adaptado e a realidade reescrita por razões artísticas. Por exemplo: a ordem cronológica foi adulterada para a história do encontro do Rei com o terapeuta da fala se dar precisamente durante a crise de sucessão. Na verdade, Lionel Logue prestava assistência a Jorge VI dez anos antes dessa crise.

O neto de Lionel Logue, Robert, expressou à BBC as suas dúvidas sobre alguns dos comportamentos do avô. "Duvido muito que dissesse asneiras à frente de sua majestade como o filme sugere".

Alheio a estas críticas está Colin Firth, nomeado pelo segundo ano consecutivo para o Óscar de Melhor Actor e já com um Globo de Ouro no bolso nessa mesma categoria. Firth, que parecia destinado a ficar para sempre com os papéis de sub-canastrão inglês, não tem um problema de fala como o rei que representa. A única maneira de se relacionar com o pavor de Jorge VI é ao recordar-se de uma vez na escola em que foi apanhado a falar. "Tinha oito anos e a professora obrigou-me a dar uma aula na semana seguinte", contou à "The New Yorker". Sobre a sua muito elogiada falsa gaguez, Firth deixa um aviso: "Há muitos manuais sobre como deixar de gaguejar, mas nenhum livro que ensine como começar".

Luís Leal Miranda, aqui