quarta-feira, 29 de setembro de 2010

"A IDADE MÉDIA NÃO É TÃO CRISTÃ COMO SE PENSA"

Historiador de projecção nacional e internacional, o professor José Mattoso tem dado um importante contributo para o conhecimento da identidade portuguesa e das raízes da Europa.

Depois de inúmeras obras publicadas em nome próprio, a sua mais recente incursão nos domínios da História diz respeito ao projecto inédito "A vida privada portuguesa", que o Círculo de Leitores edita sob sua direcção.

Para a “História da vida privada portuguesa” tomou-se como referência o modelo francês, a obra de Philippe Ariés/G. Duby. Quais foram as maiores dificuldades com que se debateu o projecto português?

A maior dificuldade foi conseguir distinguir “Vida privada” de “Vida quotidiana”. O conceito de vida quotidiana é simples. Pode ser tratado de maneira descritiva. O de vida privada é ambíguo. Temos de interpretar indícios indirectos e ambivalentes.

Tratando-se de pesquisa inédita que direcções procurou sugerir aos investigadores que convidou?

Tomei em conta as respectivas especializações. A maioria dos colaboradores sabia bem do que se tratava; alguns já tinham feito investigações sobre esses temas ou afins. Ao centrarmos as atenções sobre material português ou peninsular limitámos a própria redacção dos artigos, procurando os dados mais significativos, para o ponto de vista que pretendíamos encarar.

No texto de apresentação da obra refere que o êxito do trabalho francês se deveu em grande parte a razões não científicas embora o resultado da investigação fosse sério. No caso português como foi feito esse equilíbrio?

Como a documentação é, normalmente, pouco explícita, tratava-se mais de interpretá-la do que reproduzi-la. De resto a vida íntima não tem só transgressões, longe disso. O que importa é encontrar as diferenças entre as várias épocas, entre o passado e o presente, e tentar explicá-las. Há uma curiosidade que se excita com a descoberta do oculto. Mas há também a curiosidade que se alimenta da diferença e se interroga acerca das razões que a explicam.

Sendo o professor especialista em  História Medieval, quais terão sido os maiores entraves à investigação deste período?
Para além da dificuldade de interpretar a linguagem figurada, há duas dificuldades características: a redução das fontes disponíveis a dois ou três tipos que dão informações directas; e a quase impossibilidade de obter informações não só da prática mas também da teoria.

O que pretendeu sublinhar na organização do volume sobre a Idade Média?
É difícil dizer em poucas palavras. A primeira coisa que me lembro é que a Idade Média não é tão cristã como geralmente se pensa, nem, por outro lado, tão rude e primitiva como outros dizem. Um dos aspectos mais característicos desta época é o que se pode chamar a «dialogia», isto é, uma norma muito exigente ou até radical - a dos sermões - e uma prática muito maleável, baseada nas circunstâncias e nos casos pessoais. Quanto à rudeza dos costumes, creio que se deve pôr de lado o conceito de «idade das trevas» que muitas vezes se aplica à Idade Média. Diferente é o problema das concepções mágicas, que é um problema muito complexo, mas em que houve, sem dúvida alguma, um progresso muito lento devido à racionalização da teologia e ao desenvolvimento das universidades. De qualquer maneira um tipo de magia que não tem nada que ver com “Harry Potter” ou “O Senhor dos Anéis”.

Esta História é passível de integrar várias visões sobre a mesma matéria?
Sim, pode envolver várias interpretações. Muitos dos indícios usados para descrever a vida privada de outrora têm um sentido ambíguo. É também um projecto em aberto porque a fluidez dos sentidos sugere novas interpretações e a consulta de novas fontes.

O que pensa que poderá despertar mais interesse no leitor?
Não duvido que sejam os aspectos mais ligados à sexualidade ou ao corpo.

Daqui a um século acha que será mais fácil acrescentar um novo volume a esta colecção mesmo correndo-se o risco de estarmos continuamente a produzir, via Internet, um excesso de dados sem interesse?
Aí está um assunto que não me interessa nada. Num projecto deste tipo, o número de leitores que julga poder vir a encontrar na nossa História qualquer coisa que se pareça com a “Playboy”, verifica rapidamente que não é a mesma coisa.

Ana Vitória, aqui