Salazar caiu da cadeira há 42 anos e morreu há 40. Duas obras trazem-no de volta.
A 6 Setembro de 1969, o jornal francês L'Aurore publicou uma entrevista com António de Oliveira Salazar que tinha tanto de surreal quanto de embaraçosa: "Um ano depois de a doença o ter afastado do poder, encontrei Salazar no seu palácio de Lisboa - julga que ainda está a governar Portugal."
O título do jornalista francês deu que falar, mas nunca chegou aos ouvidos do ditador português. Desde que caiu da cadeira diante do calista até ao dia da sua morte, quase dois anos depois, Salazar viveu uma ilusão. Doente, por vezes, senil, recebia os ministros em São Bento, sem perceber que tudo aquilo era um teatro e que Marcelo Caetano tinha ocupado o poder.
As peripécias do epílogo da vida do professor que veio de Coimbra para, durante três décadas, governar o País com mão de ferro são contadas em Os Últimos Meses de Salazar, de Paulo Otero. O retrato de um homem frágil foi publicado na semana dos 40 anos da morte do ditador e dos 42 que passaram (ontem mesmo) sobre a queda da cadeira.
Embora tivesse vivido até aos 81 anos, em nenhum momento Salazar abdicou do poder ou escolheu um sucessor. Semanas depois de cair da cadeira sofreu um acidente vascular cerebral. Os médicos declararam-no "incapacitado" e apostaram na sua morte. O cardeal Cerejeira foi a correr dar-lhe a extrema unção e Américo Tomás, o presidente, exonerou-o e convidou Marcelo Caetano para o lugar. Só que o "senhor doutor" sobreviveu.
Quase cego e paralisado do lado esquerdo, saiu do hospital e fez-se conduzir até ao Palácio de São Bento. Começava a ficção. "Todos os que lhe eram próximos tomaram parte no complô. Américo Tomás nunca teve coragem para lhe contar a verdade e visitava-o como antes. Marcelo Caetano continuou a mandar-lhe os livros, mas nunca assumiu no prefácio que era presidente do Conselho. Ele respondia-lhe com um cartão de agradecimento. Tudo como sempre."
Otero acredita que Salazar morreu a pensar que ainda mandava. O coração parou de bater às 09.15 de 27 de Julho de 1970. Após um electrocardiograma "quilométrico" e de linha direita foi confirmada a morte do ditador que estava a ser acompanhado por um exército de médicos. Segundo notícia do Expresso, o seu tratamento custou ao Estado 831 mil euros.
O Portugal de então ficou comovido, mas continuou em frente e com pressa. Quatro anos depois, deu-se a revolução e o novo regime encarregou-se de diabolizar a figura. Agora, à distância segura, o ditador voltou a estar na moda. Em 2007, venceu o concurso de TV Os Grandes Portugueses. E vieram as séries sobre a vida amorosa.
"A ditadura tem sido banalizada e trivializada", afirma António Simões do Paço, historiador que acaba de publicar uma biografia sobre Salazar. O Ditador Encoberto é uma obra contra a corrente. Mais do que revelações é obra de síntese, que segue os passos de Salazar desde os tempos do seminário, passando pela faculdade em Coimbra até ao Governo.
Salazar percorreu o caminho até à chefia do Estado Novo pondo ordem nas finanças descontroladas que os militares que fizeram o golpe de 1926 herdaram da Primeira República. Da primeira vez que aceitou o convite para ser ministro ficou apenas por cinco dias. À segunda impôs uma condição: o poder de travar o aumento da despesa. Com o sucesso, veio a ascensão a primeiro-ministro.
Fundou o Estado Novo e desembaraçou-se dos adversários à esquerda e à direita e manteve debaixo de olho monárquicos e militares. Durante os anos 1930 e 1940, a ditadura viveu a par dos regimes fascista e nazi. Depois da guerra, encontrou o seu espaço no mundo da Guerra Fria.
Os anos 1950 são os do romance com a jornalista Christine Garnier. Ela chegou em finais de Junho de 51 com o projecto de escrever um livro sobre Salazar, mas acabou a passar férias com ele. Na biografia, conta-se que, num almoço, Christine pergunta a Azeredo Perdigão, presidente da Fundação Gulbenkian: "On dit que je couche avec le président?" (Diz-se que eu durmo com o presidente do conselho?). Ele respondeu: "Si, l'on dit" (Sim, diz-se).
Simões do Paço conta que a relação durou anos, antes de lhe Salazar lhe pôr fim. "A política sempre primeiro." Nos anos 1960, o ditador ficou "orgulhosamente só" na guerra pelo Império do Ultramar. Salazar morreu sem saber que o conflito seria o carrasco do seu regime. E a pensar que ainda era ele que mandava.
Hugo Filipe Coelho, aqui